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segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Dalton Macambira: A história despertada pela crise ambiental


MMA
   
“Lucien Febvre costumava dizer: ‘a história é o homem’.

Eu, por outro lado, digo: a história é o homem e tudo mais.

Tudo é história: solo, clima, movimentos geológicos.”

(Fernand Braudel)

Na década de 1960, os problemas ambientais no mundo deixam de ser preocupação apenas de ambientalistas, de cientistas e de alguns estudiosos e interessados no assunto para assumir papel de destaque na agenda dos estados nacionais. O poder público foi despertado pela catástrofe africana representada por um longo período de seca (1967-1970) na região semiárida do Sahel, o que levou a ONU, entre outros eventos climáticos extremos, a convocar a sua primeira conferência para tratar dessa temática em Estocolmo, na Suécia (1972).


O desdobramento desse primeiro grande evento sobre meio ambiente foi a Conferência das Nações Unidas sobre desertificação, realizada em Nairóbi, no Quênia (1977). Esta conferência colocou na agenda da ONU o tema do meio ambiente, no geral, além de outros temas vinculados às mudanças do clima, mas foi determinante na luta contra a desertificação no plano mundial, sobretudo na aprovação, duas décadas mais tarde, da Convenção das Nações Unidas de Combate a Desertificação – UNCCD (1996).


No campo da história, no final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970 surge uma nova geração de historiadores preocupados com a emergência da crise ambiental. A História e o Meio Ambiente começam a formar um novo campo na historiografia nos EUA, de forma pioneira, expandindo-se posteriormente para a Europa e chegando ao Brasil no final da década de 1980.


Não se trata de contar a história da natureza ou da ecologia, mas sim de estabelecer uma relação dialética entre a sociedade humana e os ambientes em que viveram ao longo do tempo e quais transformações produziram ao meio e em que medida o uso dos recursos naturais influenciou a constituição de determinadas sociedades. Para o historiador norte-americano Donald Worster, “a história ambiental trata do papel e do lugar da natureza na vida humana”.


O Marxismo e a Nova História, ao romperem com a historiografia tradicional, não conseguiram estabelecer, em certa medida, uma adequada articulação da esfera econômica e cultural, respectivamente, com o ambiente onde as sociedades se desenvolveram. Trata-se de juntar numa mesma análise o que nunca foi separado: o universo das relações entre as sociedades humanas e a natureza.



Os problemas ambientais passaram tornaram-se uma preocupação de todos



Segundo Drummond, essas correntes historiográficas mencionadas, que romperam com a visão da história tradicional, “tem sido incapaz de esclarecer exatamente os tipos de sociedade gerados pela exploração de um recurso natural ou de vários recursos simultaneamente, ou de vários recursos em sequência”. Isto é, o objetivo da história ambiental “seria identificar, em escala regional e local, que tipos de sociedade se formaram em torno de diferentes recursos naturais, que permanência teve essas sociedades e que tipo de consequências elas criaram para os seus ambientes sustentarem outros tipos de sociedade”.


Para Carvalho, uma das principais contribuições da história ambiental está na preservação da memória, ou seja, as pesquisas das relações dos homens com os ambientes em que viviam, e o uso que faziam e fazem dos recursos naturais disponíveis, podem contribuir com a sociedade atual, além de possibilitar conscientização sobre a necessidade do uso racional e sustentável dos ativos ambientais, com vistas a evitar que os erros do passado possam se repetir no presente e no futuro.


Nesse mesmo sentido, destaca-se o trabalho do historiador norte-americano Warren Dean sobre a “devastação” da Mata Atlântica no Brasil, pois atualmente só resta cerca de 10% de sua cobertura original. Ressalta o autor que o conhecimento desse passado pode ajudar a preservar outros biomas, como a Floresta Amazônica, por meio do questionamento: “não deveria esse holocausto produzido pelo homem ser relatado de geração para geração?” E ainda arremata: “não deveria o manual de história aprovado pelo Ministério da Educação começar assim: 'crianças, vocês vivem em um deserto; vamos lhes contar como foi que vocês foram deserdadas’”.


Todavia, Pádua nos chama a atenção para o fato de que não se pode julgar as gerações passadas utilizando conceitos e valores atuais. Nessa perspectiva, salienta que:

 
“É essencial, no entanto, evitar o anacronismo e a pretensão de que os indivíduos do passado possam ser cobrados em razão de categorias tão modernas quanto são ecologia, sustentabilidade, impactos da ação humana etc. É preciso entender cada época no seu contexto geográfico, social, tecnológico e cultural. [...] A pesquisa em história ambiental, de toda maneira, até pelo próprio fato de ser "ambiental", não costuma se fazer na abstração das teorias puras, mas sim nas contradições de lugares e experiências vividas. Na maioria das vezes, ela se dá por meio de recortes geográficos e biofísicos concretos: uma região florestal, uma bacia hidrográfica, uma cidade, uma zona agrícola etc. [...] A história ambiental, como ciência social, deve sempre incluir as sociedades humanas. Mas também reconhecer a historicidade dos sistemas naturais. O desafio, repetindo, é construir uma leitura aberta e interativa da relação entre ambos. Tal postura aberta deve significar, em sentido fundamental, o abandono da visão catastrófica e do "homem devastador" que a voz das ruas costuma exigir. [...] No sentido mais profundo, o desafio analítico é o de superar as divisões rígidas e dualistas entre natureza e sociedade, em favor de uma leitura dinâmica e integrativa, fundada na observação do mundo que se constrói no rio do tempo”.


Em função dessa compreensão, Pádua revela que as origens das preocupações ambientais no Brasil são anteriores ao processo de industrialização e remontam ao processo de independência. Tal constatação foi identificada em diversos discursos de uma parcela minoritária das nossas elites, que alertavam para o uso dos ativos ambientais de forma irracional e desordenada, inclusive com previsões pioneiras ao risco da desertificação, citando intelectuais como José Bonifácio de Andrada e Silva e Joaquim Nabuco, entre outros.

 
Na mesma perspectiva de Pádua, Duarte enfatiza a importância de “[...] compreender a historicidade das relações entre a sociedade e a natureza pode, certamente, dar-nos instrumentos para assumir uma postura mais crítica frente aos debates sobre o ambiente”. Patenteia que a relevância do conhecimento histórico evidencia que “tornarmo-nos mais capazes de perceber [...] tanto as falácias do desenvolvimento como as idealizações autoritárias de algumas propostas ecológicas ditas ‘alternativas’”.


Com base nessa compreensão, concorda-se com a assertiva de Worster de que os homens provocam “mudanças” e não “danos” ao ambiente.


Do ponto de vista do método, o historiador ambiental busca estabelecer, como premissa, a delimitação do campo de trabalho que defina recortes baseados em uma determinada região ou bacia hidrográfica, um dado bioma, uma cidade ou área agrícola, etc. Destarte, Worster, cujas obras principais tratam das origens dos processos de desertificação nos EUA, fruto das ações dos homens e da natureza, ressalta que:

 
“[...] Há três níveis em que a nova história funciona, três conjuntos de questões que ela enfrenta [...], três grupos de perguntas que ela procura responder, cada um deles exigindo contribuições de outras disciplinas e aplicando métodos especiais de análise. O primeiro trata do entendimento da natureza propriamente dita, tal como se organizou e funcionou no passado. [...] O segundo nível da história ambiental introduz o domínio socioeconômico na medida em que este interage com o ambiente. [...] Por fim, formando um terceiro nível de análise para o historiador, vem aquele tipo de interação mais intangível e exclusivamente humano, puramente mental ou intelectual, no qual percepções, valores éticos, leis, mitos e outras estruturas de significação se tornam parte do diálogo de um indivíduo ou de um grupo com a natureza [...]”.

 
Nesse sentido, Worster nos ajuda a formular as perguntas cujas respostas nos permitirão alcançar nossos objetivos, responder ao problema colocado e constatar ou não a hipótese do trabalho de pesquisa, utilizando a metodologia da história ambiental.


Importante destacar que, no caso do Piauí, temos uma obra pioneira na perspectiva da história ambiental. Trata-se da tese de doutorado de Gercinair Gandara sobre o Rio Parnaíba e a sua relação com a formação da sociedade piauiense, particularmente com as populações das cidades que foram fundadas nas margens do “Velho Monge”. Para a autora, foi esse recurso natural e esse curso d’água “quem propiciou a povoação em suas beiras. Ele foi/é via regional que transporta(va) mercadorias, pessoas e, consequentemente, suas representações [...], suporte material com função de ligar, unir espaços e gentes”.


Sendo assim, acrescente-se, em conformidade com Drummond que:

 
“a comunidade de cientistas sociais e afins precisa estudar melhor e incorporar analiticamente as variáveis biofísicas, superando um receio infundado de sucumbir a “determinismos” naturalistas, trilhando os caminhos abertos por alguns clássicos de nossas disciplinas, como Caio Prado Jr., Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Sérgio Buarque de Holanda. Esses caminhos ficaram abandonados por muito tempo e precisam ser desbravados “a facão”, para dar acesso à “fronteira” ainda inexplorada dos estudos socioambientais”.


Desertificação em Gilbués, região sul do Piauí


Uma pesquisa que nos permita compreender o processo histórico da desertificação em Gilbués-PI, por exemplo, deve considerar esses pressupostos teóricos, visando investigar a sociedade gilbuense no tempo e no espaço, sobretudo resgatando o período em que teve início esse fenômeno, aproximadamente a partir da década de 1940. Ao analisar a sociedade local, é fundamental destacar suas preocupações, angustias e contradições, e as demandas que levaram à forma de uso dos recursos naturais naquela região. Para tanto, como a história ambiental tem caráter interdisciplinar, por requerer o diálogo sistemático com as demais ciências humanas e naturais, é importante utilizar o conhecimento já produzido sobre os diversos processos que levaram à degradação do solo para ilustrar e fortalecer essa complexa análise das relações dos homens com a natureza.


Referências


CARVALHO, E. B. A história ambiental e a “crise ambiental” contemporânea: um desafio político para o historiador. Esboços, Florianópolis, v. 11, n. 11, p. 105-117, 2004.


DEAN, W. A ferro e fogo: A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


DRUMMOND, J. A. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 177-197, 1991.


A. Por que estudar a história ambiental do Brasil? Ensaio temático. Varia História, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 13-32, jan. 2002.


DUARTE, R. H. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.


GANDARA, G. S. Rio Parnaíba ... Um cadinho de mim e a história ambiental. Textos de História, v. 17, n. 1, p. 39-57, 2009.


MACAMBIRA, D. M. A História Ambiental e o processo de desertificação em Gilbués (PI). Informe Econômico: Ano XIX, n. 36. Teresina, EDUFPI, 2016, p. 44-50.


PÁDUA, J. A. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.


As bases teóricas da história ambiental. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 68, p. 81-101, São Paulo, 2010.


WORSTER, D. Para fazer história ambiental. Tradução de José Augusto Drummond. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 198-215, 1991.

*Dalton Macambira é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Piauí – UFPI e doutorando em Desenvolvimento e Meio Ambiente pelo PRODEMA/UFPI.

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