Não
se trata de contar a história da natureza, mas de estabelecer uma
relação entre a sociedade humana e os ambientes que viveram
Por Dalton Macambira*
MMA
“Lucien Febvre costumava dizer: ‘a história é o homem’.
Eu, por outro lado, digo: a história é o homem e tudo mais.
Tudo é história: solo, clima, movimentos geológicos.”
(Fernand Braudel)
Na década de 1960, os problemas ambientais no mundo deixam de ser
preocupação apenas de ambientalistas, de cientistas e de alguns
estudiosos e interessados no assunto para assumir papel de destaque na
agenda dos estados nacionais. O poder público foi despertado pela
catástrofe africana representada por um longo período de seca
(1967-1970) na região semiárida do Sahel, o que levou a ONU, entre
outros eventos climáticos extremos, a convocar a sua primeira
conferência para tratar dessa temática em Estocolmo, na Suécia (1972).
O desdobramento desse primeiro grande evento sobre meio ambiente foi a
Conferência das Nações Unidas sobre desertificação, realizada em
Nairóbi, no Quênia (1977). Esta conferência colocou na agenda da ONU o
tema do meio ambiente, no geral, além de outros temas vinculados às
mudanças do clima, mas foi determinante na luta contra a desertificação
no plano mundial, sobretudo na aprovação, duas décadas mais tarde, da
Convenção das Nações Unidas de Combate a Desertificação – UNCCD (1996).
No campo da história, no final dos anos de 1960 e início dos anos de
1970 surge uma nova geração de historiadores preocupados com a
emergência da crise ambiental. A História e o Meio Ambiente começam a
formar um novo campo na historiografia nos EUA, de forma pioneira,
expandindo-se posteriormente para a Europa e chegando ao Brasil no final
da década de 1980.
Não se trata de contar a história da natureza ou da ecologia, mas sim de
estabelecer uma relação dialética entre a sociedade humana e os
ambientes em que viveram ao longo do tempo e quais transformações
produziram ao meio e em que medida o uso dos recursos naturais
influenciou a constituição de determinadas sociedades. Para o
historiador norte-americano Donald Worster, “a história ambiental trata
do papel e do lugar da natureza na vida humana”.
O Marxismo e a Nova História, ao romperem com a historiografia
tradicional, não conseguiram estabelecer, em certa medida, uma adequada
articulação da esfera econômica e cultural, respectivamente, com o
ambiente onde as sociedades se desenvolveram. Trata-se de juntar numa
mesma análise o que nunca foi separado: o universo das relações entre as
sociedades humanas e a natureza.
Os problemas ambientais passaram tornaram-se uma preocupação de todos
Segundo Drummond, essas correntes historiográficas mencionadas, que
romperam com a visão da história tradicional, “tem sido incapaz de
esclarecer exatamente os tipos de sociedade gerados pela exploração de
um recurso natural ou de vários recursos simultaneamente, ou de vários
recursos em sequência”. Isto é, o objetivo da história ambiental “seria
identificar, em escala regional e local, que tipos de sociedade se
formaram em torno de diferentes recursos naturais, que permanência teve
essas sociedades e que tipo de consequências elas criaram para os seus
ambientes sustentarem outros tipos de sociedade”.
Para Carvalho, uma das principais contribuições da história ambiental
está na preservação da memória, ou seja, as pesquisas das relações dos
homens com os ambientes em que viviam, e o uso que faziam e fazem dos
recursos naturais disponíveis, podem contribuir com a sociedade atual,
além de possibilitar conscientização sobre a necessidade do uso racional
e sustentável dos ativos ambientais, com vistas a evitar que os erros
do passado possam se repetir no presente e no futuro.
Nesse mesmo sentido, destaca-se o trabalho do historiador
norte-americano Warren Dean sobre a “devastação” da Mata Atlântica no
Brasil, pois atualmente só resta cerca de 10% de sua cobertura original.
Ressalta o autor que o conhecimento desse passado pode ajudar a
preservar outros biomas, como a Floresta Amazônica, por meio do
questionamento: “não deveria esse holocausto produzido pelo homem ser
relatado de geração para geração?” E ainda arremata: “não deveria o
manual de história aprovado pelo Ministério da Educação começar assim:
'crianças, vocês vivem em um deserto; vamos lhes contar como foi que
vocês foram deserdadas’”.
Todavia, Pádua nos chama a atenção para o fato de que não se pode julgar
as gerações passadas utilizando conceitos e valores atuais. Nessa
perspectiva, salienta que:
“É essencial, no entanto, evitar o anacronismo e a pretensão de
que os indivíduos do passado possam ser cobrados em razão de categorias
tão modernas quanto são ecologia, sustentabilidade, impactos da ação
humana etc. É preciso entender cada época no seu contexto geográfico,
social, tecnológico e cultural. [...] A pesquisa em história ambiental,
de toda maneira, até pelo próprio fato de ser "ambiental", não costuma
se fazer na abstração das teorias puras, mas sim nas contradições de
lugares e experiências vividas. Na maioria das vezes, ela se dá por meio
de recortes geográficos e biofísicos concretos: uma região florestal,
uma bacia hidrográfica, uma cidade, uma zona agrícola etc. [...] A
história ambiental, como ciência social, deve sempre incluir as
sociedades humanas. Mas também reconhecer a historicidade dos sistemas
naturais. O desafio, repetindo, é construir uma leitura aberta e
interativa da relação entre ambos. Tal postura aberta deve significar,
em sentido fundamental, o abandono da visão catastrófica e do "homem
devastador" que a voz das ruas costuma exigir. [...] No sentido mais
profundo, o desafio analítico é o de superar as divisões rígidas e
dualistas entre natureza e sociedade, em favor de uma leitura dinâmica e
integrativa, fundada na observação do mundo que se constrói no rio do
tempo”.
Em função dessa compreensão, Pádua revela que as origens das
preocupações ambientais no Brasil são anteriores ao processo de
industrialização e remontam ao processo de independência. Tal
constatação foi identificada em diversos discursos de uma parcela
minoritária das nossas elites, que alertavam para o uso dos ativos
ambientais de forma irracional e desordenada, inclusive com previsões
pioneiras ao risco da desertificação, citando intelectuais como José
Bonifácio de Andrada e Silva e Joaquim Nabuco, entre outros.
Na mesma perspectiva de Pádua, Duarte enfatiza a importância de
“[...] compreender a historicidade das relações entre a sociedade e a
natureza pode, certamente, dar-nos instrumentos para assumir uma postura
mais crítica frente aos debates sobre o ambiente”. Patenteia que a
relevância do conhecimento histórico evidencia que “tornarmo-nos mais
capazes de perceber [...] tanto as falácias do desenvolvimento como as
idealizações autoritárias de algumas propostas ecológicas ditas
‘alternativas’”.
Com base nessa compreensão, concorda-se com a assertiva de Worster de
que os homens provocam “mudanças” e não “danos” ao ambiente.
Do ponto de vista do método, o historiador ambiental busca estabelecer,
como premissa, a delimitação do campo de trabalho que defina recortes
baseados em uma determinada região ou bacia hidrográfica, um dado bioma,
uma cidade ou área agrícola, etc. Destarte, Worster, cujas obras
principais tratam das origens dos processos de desertificação nos EUA,
fruto das ações dos homens e da natureza, ressalta que:
“[...] Há três níveis em que a nova história funciona, três
conjuntos de questões que ela enfrenta [...], três grupos de perguntas
que ela procura responder, cada um deles exigindo contribuições de
outras disciplinas e aplicando métodos especiais de análise. O primeiro
trata do entendimento da natureza propriamente dita, tal como se
organizou e funcionou no passado. [...] O segundo nível da história
ambiental introduz o domínio socioeconômico na medida em que este
interage com o ambiente. [...] Por fim, formando um terceiro nível de
análise para o historiador, vem aquele tipo de interação mais intangível
e exclusivamente humano, puramente mental ou intelectual, no qual
percepções, valores éticos, leis, mitos e outras estruturas de
significação se tornam parte do diálogo de um indivíduo ou de um grupo
com a natureza [...]”.
Nesse sentido, Worster nos ajuda a formular as perguntas cujas
respostas nos permitirão alcançar nossos objetivos, responder ao
problema colocado e constatar ou não a hipótese do trabalho de pesquisa,
utilizando a metodologia da história ambiental.
Importante destacar que, no caso do Piauí, temos uma obra pioneira na
perspectiva da história ambiental. Trata-se da tese de doutorado de
Gercinair Gandara sobre o Rio Parnaíba e a sua relação com a formação da
sociedade piauiense, particularmente com as populações das cidades que
foram fundadas nas margens do “Velho Monge”. Para a autora, foi esse
recurso natural e esse curso d’água “quem propiciou a povoação em suas
beiras. Ele foi/é via regional que transporta(va) mercadorias, pessoas
e, consequentemente, suas representações [...], suporte material com
função de ligar, unir espaços e gentes”.
Sendo assim, acrescente-se, em conformidade com Drummond que:
“a comunidade de cientistas sociais e afins precisa estudar
melhor e incorporar analiticamente as variáveis biofísicas, superando um
receio infundado de sucumbir a “determinismos” naturalistas, trilhando
os caminhos abertos por alguns clássicos de nossas disciplinas, como
Caio Prado Jr., Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Sérgio Buarque de
Holanda. Esses caminhos ficaram abandonados por muito tempo e precisam
ser desbravados “a facão”, para dar acesso à “fronteira” ainda
inexplorada dos estudos socioambientais”.
Desertificação em Gilbués, região sul do Piauí
Uma pesquisa que nos permita compreender o processo histórico da
desertificação em Gilbués-PI, por exemplo, deve considerar esses
pressupostos teóricos, visando investigar a sociedade gilbuense no tempo
e no espaço, sobretudo resgatando o período em que teve início esse
fenômeno, aproximadamente a partir da década de 1940. Ao analisar a
sociedade local, é fundamental destacar suas preocupações, angustias e
contradições, e as demandas que levaram à forma de uso dos recursos
naturais naquela região. Para tanto, como a história ambiental tem
caráter interdisciplinar, por requerer o diálogo sistemático com as
demais ciências humanas e naturais, é importante utilizar o conhecimento
já produzido sobre os diversos processos que levaram à degradação do
solo para ilustrar e fortalecer essa complexa análise das relações dos
homens com a natureza.
Referências
CARVALHO, E. B. A história ambiental e a “crise ambiental”
contemporânea: um desafio político para o historiador. Esboços,
Florianópolis, v. 11, n. 11, p. 105-117, 2004.
DEAN, W. A ferro e fogo: A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
DRUMMOND, J. A. A história ambiental: temas, fontes e linhas de
pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 177-197,
1991.
A. Por que estudar a história ambiental do Brasil? Ensaio temático.
Varia História, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 13-32, jan. 2002.
DUARTE, R. H. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
GANDARA, G. S. Rio Parnaíba ... Um cadinho de mim e a história ambiental. Textos de História, v. 17, n. 1, p. 39-57, 2009.
MACAMBIRA, D. M. A História Ambiental e o processo de desertificação em
Gilbués (PI). Informe Econômico: Ano XIX, n. 36. Teresina, EDUFPI, 2016,
p. 44-50.
PÁDUA, J. A. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica
ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002.
As bases teóricas da história ambiental. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 68, p. 81-101, São Paulo, 2010.
WORSTER, D. Para fazer história ambiental. Tradução de José Augusto
Drummond. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 198-215,
1991.
*Dalton
Macambira é professor do Departamento de História da Universidade
Federal do Piauí – UFPI e doutorando em Desenvolvimento e Meio Ambiente
pelo PRODEMA/UFPI.
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