A favor da ‘autodeclaração’ das empresas

Com a tragédia de Brumadinho, provocada pela mineradora Vale, o ministério do Meio Ambiente assumiu uma inesperada posição central no início do governo Bolsonaro. O presidente chegou a cogitar a fusão da pasta com o ministério da Agricultura – o que, na prática, submeteria órgãos como o Ibama aos interesses agropecuários –, mas voltou atrás após uma dura reação da sociedade civil. Acabou nomeando, então, o ex-colega do PP, Ricardo Salles, agora filiado ao Novo.
Com uma campanha eleitoral em que prometia “munição de fuzil” contra o MST, chamou a atenção de Bolsonaro. “Vocês gostaram do ministro do Meio Ambiente agora, né?”, disse Bolsonaro a ruralistas logo após a escolha, em um vídeo gravado no Clube Militar de Brasília.
Assim como seu chefe e seus colegas, Salles chegou ao ministério motivado a extirpar a “ideologia” de esquerda. Disse que “perseguição ideológica não é saudável para ninguém” e que sua gestão seria responsável por “harmonizar” os interesses. Seguindo a cartilha de seu chefe – que queria no ministério alguém “sem caráter xiita” e proteger o meio ambiente sem “criar dificuldades para o nosso progresso” –, Salles disse que no Brasil há um “descontrole na aplicação da lei e da fiscalização”.
Depois de Brumadinho, o ministro classificou a atual lei ambiental como “complexa e irracional”. “Recursos humanos que deveriam estar focados nas questões de médio e alto risco estão sendo dispersos. Precisamos de legislação que funcione, licenciamento que funcione”, disse.
‘É uma legislação tão complexa e irracional que não funciona’, disse Salles.
A flexibilização e a simplificação das leis ambientais é uma demanda de setores como a mineração e a agropecuária, que fazem lobby para aprovar o licenciamento para o setor. A proposta de Salles, defendida antes de Brumadinho, é que a liberação possa ser feita com uma “autodeclaração” – ou seja, o empreendedor diz que a obra está ok, e a fiscalização vem depois. Na proposta de Salles, não fica claro, por exemplo, quem define o grau de impacto ambiental de uma obra.
Se depender do histórico de defesa dos interesses corporativos e “desburocratização” – uma palavra bonita que ele usou para justificar não ter cumprido os ritos tradicionais dos processos ambientais em seu período como secretário –, não é difícil deduzir a quem o seu posicionamento vai beneficiar.
ENQUANTO SALLES recorre da condenação, o Ministério Público paulista entrou com uma apelação pedindo que ele seja impedido de exercer o cargo de ministro. Segundo o MP, a mudança nos mapas ordenada por Salles poderia provocar “gravíssimas consequências”. Os condenados, segundo os promotores, agiram “com a clara intenção de beneficiar setores econômicos, notadamente a mineração”. Vale lembrar que a justiça paulista livrou o ex-secretário – e também a Fiesp – de uma multa milionária pelos possíveis danos ambientais decorrentes das alterações. Outro advogado entrou com uma ação para tentar impedir que Salles assumisse, mas a justiça paulista negou o pedido. “Gostando ou não da escolha, parece que ainda foi feita dentro do espaço de discricionariedade política próprio do cargo de Presidente da República”, disse o juiz na decisão.
Em entrevista à Jovem Pan, o ministro atribuiu a condenação à perseguição “ideológica”, como de praxe. O ministro disse que “esse processo e a decisão são muito mais um combate político-ideológico contra a postura que eu adotei na secretaria do que qualquer ilegalidade formal”. E que Bolsonaro reconhece isso.
Apesar das denúncias, Salles assumiu normalmente o ministério. Sua agenda foi ocupada, principalmente, por encontros com ruralistas, empresários, banqueiros e mineradoras – nenhuma reunião com ambientalistas e pesquisadores da área aconteceu em seu primeiro mês no ministério. Na quarta-feira, 23, se encontrou com representantes da Frente Parlamentar de Agropecuária e, logo depois, com Luiz Eduardo Fróes do Amaral Osório, diretor-executivo de Sustentabilidade e Relações Institucionais da Vale. Dois dias depois, a lama desceu sobre Brumadinho.
Correção: 11 de fevereiro de 2019, às 15h30
Este texto inicialmente afirmou que a obra do Parque Global foi embargada definitivamente, mas o embargo não é definitivo. A grafia do nome de Maria Cristina Murgel (e não Gurgel, como estava escrito) também foi corrigida.