Na noite do dia 20, os EUA lançaram mais um ataque contra o direito internacional, os princípios basilares da Carta das Nações, a soberania e a verdade.
Por Alexandre Figueiredo, André Coutinho e Ticiana Álvares*
Com aprovação do Senado, na quarta-feira (19), e da Câmara dos Representantes, na quinta-feira (20), o Congresso dos Estados Unidos enviou à sanção de Donald Trump uma “Lei de Direitos Humanos e Democracia de Hong Kong”. Se o presidente não der ouvidos nem às vozes moderadas dos EUA, nem à dura resposta de Pequim e, de fato, sancionar essa lei, haverá mais um elemento a complicar os já difíceis entendimentos quanto à guerra comercial em curso.
Sem nenhum pudor, sem qualquer nota explicativa, a mesma Washington que apoia a barbárie golpista na Bolívia levanta a bandeira dos direitos humanos e da democracia em Hong Kong. Quando cai a qualidade da hipocrisia, é hora de começar a falar a verdade. Essa lei se soma a uma série de atos hostis contra a China com o único objetivo de conter a sua ascensão econômica e, sobretudo, seu avanço no domínio da indústria de alta tecnologia.
A partir de um olhar mais apurado, é possível verificar interesses além da retórica “da democracia e dos direitos humanos”, que aliás não parece ser uma preocupação estadunidense, haja vista os apoios às barbáries que são executadas mundo afora pelos próprios e seus aliados (Israel, Arábia Saudita etc.). Hong Kong é um dos maiores centros financeiros mundiais, faz fronteira terrestre com Shenzhen, cidade sede da primeira Zona Econômica Especial, importante centro tecnológico e considerado o “Vale do Silício” da China. Ademais, está localizada no litoral do Mar do Sul da China, mar por onde circula a maior parte do comércio e da energia na Ásia e que vem sendo locus de tensionamentos constantes, estimulado pelos EUA, com objetivo claro de criar litígios entre os países do Sudeste Asiático e influenciar na balança de poder na região, de maneira a tentar evitar uma maior influência chinesa.
Desde 1997, quando Hong Kong foi reincorporada à China após 155 anos de ocupação britânica, encerrando um período de colonialismo assassino que ainda deixa marcas, os EUA deram status econômico especial à ilha, outorgando benefícios tarifários para as exportações. A lei que o Congresso entregou a Trump determina que Washington avaliará, anualmente, se mantém ou não esse status que dão a Hong Kong. Além disso, traz normas rígidas para a concessão de vistos e prevê a cassação do visto e outras sanções a pessoas que os EUA definam, subjetivamente, como causadores de danos aos direitos humanos e à democracia em Hong Kong.
Ora, o status especial estabelecido para as relações comerciais não se deveu à generosidade norte-americana, mas sim, como costuma ser, na economia: havia então, como há hoje, fortes interesses empresariais dos Estados Unidos em Hong Kong. Mais de 1300 empresas dos EUA atuam na ilha, muitas das quais tendo ali inclusive sua sede asiática. Não à toa, a Câmara Americana de Comércio local já externou suas preocupações com os efeitos desse projeto.
E eles serão graves. Com essa lei, os EUA dizem explicitamente não reconhecer a política chinesa de “um país, dois sistemas” e se arrogam no direito de editar normas sobre questões internas de outros países. Trata-se de um grave precedente. Nós, latino-americanos, conhecemos bem as consequências da Emenda Platt, pela qual os EUA estavam autorizados a interferir em Cuba sempre que considerasse pertinente. Quando um Estado reivindica jurisdição sobre o território de outro, é todo o sistema internacional que está ameaçado.
Marco Rubio, senador republicano, foi transparente no reconhecimento da violação da soberania chinesa. Segundo ele, com essa lei os EUA dizem aos manifestantes de Hong Kong que não eles estarão passivos enquanto Pequim “atacar sua a autonomia”. No lado do Partido Democrata, o senador Bob Menendez twittou uma velha e desgastada retórica: “os EUA são o farol de luz e solidariedade para os milhões que anseiam por libertação”. As palavras “autonomia” e “libertação” dirigidas a uma província de um Estado soberano são reveladoras dos verdadeiros interesses de Washington.
Geng Shuang, porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da China, disse, no dia 20, que Pequim entende essa lei como uma agressão e interferência indevida nos assuntos internos da China, frisando tratar-se de uma violação do direito internacional e das normas básicas que regem as relações internacionais. Afinal, ao contrário do que os congressistas dos EUA querem fazer entender, Hong Kong é parte da China e seus assuntos internos são assuntos internos da China.
As manifestações que vem acontecendo tem sido fortemente estimuladas de fora para dentro, atendendo a anseios que visam atingir a coesão do projeto nacional chinês a fim de enfraquecer a China diante das disputas comerciais, tecnológicas e geopolíticas em geral. A razão pela qual as manifestações começaram já não existe e houve um esvaziamento da pauta, ficando cada vez mais claro que trata-se de uma Guerra Híbrida, com enredo muito parecido com as chamadas “revoluções coloridas”.
A lei norte-americana é mais um elemento externo com o objetivo de desestabilização. Ao contrário de contribuir para uma solução, ela traz mais elementos de radicalidade e instabilidade. O verdadeiro interesse de Washington é o prolongamento do desgaste em Hong Kong e das consequências nocivas dos distúrbios na ilha onde está a terceira maior bolsa de valores do planeta e por onde passa uma grande parte da economia asiática. Bloqueá-la, em um contexto de guerra comercial, é claramente favorável a interesses norte-americanos e nada tem a ver com “os diretos humanos e a democracia”.
*Alexandre Figueiredo, André Coutinho e Ticiana Alvares integram o Instituto Sul Global
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