Lasar Segall
Litografia
de Lasar Segall, artista russo radicado no Brasil, produziu as imagens
para o livro do Dostoiiévski (1917)
O
grande escritor russo Dostoiéviski conseguiu escrever obras-primas que
retratam não só os dias que ele viveu, mas transcendem e podem nos
ensinar muita coisa nos dias de hoje a respeito da miséria humana,
desencontros, solidão e compaixão, antes que seja tarde
Por Christiane Brito *
Fiódor Dostoiéviski (1821-1881) assina romances que ultrapassam o tempo e as circunstâncias da época que enredam os personagens. É assim que “Criatura dócil” descreve um casal eternamente separado pela falta de comunicação e compreensão.
Os fatos objetivos (ela é muito pobre, tem 17 anos, é criada como serva da casa por umas tias, enfrenta violência e invisibilidade como ser humano; ele tem 41 anos, é dono de uma caixa de penhores, atividade da qual, nas entrelinhas do livro, confessa envergonhar-se, e vive na solidão da sua cabeça).
Ele casa-se com a jovem julgando fazer-lhe um grande favor, na sua concepção, embora a ache atraente e tenha planos de, um dia, leva-la a lugares com que a jovem nem sonha, paraísos turísticos.
Ela é dócil, e esse traço somado à lealdade acompanha-a até o último dos dias. A esposa tem o arrebatamento da juventude, a ilusão de um milagre: aproximar-se dele e transformar aquela estranheza e distância entre os dois em um encontro. Que nunca acontece.
Ao final do livro, temos a jovem morta, suicidou-se, o corpo jaz sobre uma mesa da casa, ao lado o homem vela e procurar reconstituir todo o passado do casal em busca de respostas para a agonia da sua alma.
Não encontra resposta nem alívio porque não há diálogo possível com a morte. Mas seus pensamentos erráticos lançam pistas para o leitor. Não é fácil interpretar o que jamais foi dito ou confrontado, apenas exposto por uma das partes, o homem, após a morte da mulher.
André Gide considerou a narrativa “uma coisa estupenda”. Concordo, traz ensinamentos ou reflexões que não estão exatamente nas linhas escritas, mas na abstração da leitura, na empatia com personagens, no reconhecimento de que homem e mulher possuem códigos muito diferentes para defender-se ou confrontar as desgraças do mundo.
Grossman julgou-a, em outra crítica, “uma das mais vigorosas novelas do desespero na literatura mundial”. Verdade e aqui junto minhas impressões sobre a criatura dócil e seu marido, mais tarde assustadoramente viúvo.
Escrevo a despeito de não ser crítica literária nem especialista em Dostoiéviski, escrevo com a ousadia de ser leitora cativa do autor russo e de ter conseguido mergulhar quase sempre na pobreza social, na empatia rota dos tempos de homens abandonados, na desesperança e compaixão da sua obra fundamental para entender a vida e a relação entre os homens.
A essência da história é que o casal não fala abertamente, concluem com seus botões, reagem como adolescentes a atos que interpretam do modo possível segundo o que o coração ou o intelecto os convencem.
A mulher morta sobre a mesa da sala, o marido começa a justificar-se para si mesmo:
“…não teria parecido uma rematada tolice se, na época, eu tivesse despejado tudo isso para ela em voz alta?”
O homem refere-se ao passado de pobreza, a sofrimentos que viveu antes de conhecê-la, à expulsão do exército, à vergonha que tem, jamais expressa, de ter montado uma caixa de penhores (exploração de pobres para garantir a própria sobrevivência) para mudar de vida.
Acrescenta: “O que poderia ela compreender das minhas razões sofrimentos? Entram aí a retidão, a ignorância da vida, a cegueira profunda das belas almas, mas o pior nisso tudo é a caixa de penhores, e basta, por acaso eu era algum canalha por conta da caixa de penhores, por acaso ela não via minha maneira de proceder, seu eu cobrava a mais ?! Oh, como é terrível a verdade na Terra! Essa pérola, essa criatura dócil, essa criatura celestial era uma tirana, a insuportável tirana da minha alma, meu algoz!"
O silêncio em vez de diálogo
“Por que, por que demos para ficar calados bem desde o início?”
“Da parte dela, houve arroubos, uma ou duas vezes atirava-se nos meus braços; mas visto serem arroubos doentios, histéricos, quando eu precisava de uma felicidade sólida, e que ela me respitasse.”
Que ela adivinhasse quem ele era, sem palavras
“(…) queria que ela própria adivinhasse quem é este homem e o compreendesse. Ao acolhê-la em minha casa, queria conquistar toda a sua estima. Queria que se pusesse diante de mim pelos meus sofrimentos — e eu bem que merecia isso. Oh, eu sempre fui orgulhoso, eu sempre quis tudo ou nada! Era por isso justamente que eu não queria uma felicidade pela metade, mas por inteiro — e foi precisamente por isso que me vi forçado a agir assim: Adivinhe por si mesma e avalie.”
A força da juventude: não vale nada!
“Eu lhe expliquei então, em duas palavras, sem rodeios e sem piedade (e saliento que foi sem piedade) que a magnanidade da juventude é fascinante, mas não vale um vintém. Por que não vale? Porque lhe sai de graça, não provém do fato de ter vivido, tudo isso, por assim dizer, ´são as primeiras impressões da vida´, pois bem, quero ver você pegar no pesado! Uma magnanimidade barata é sempre muito fácil, ainda que custe a própria vida — também ela sai de graça porque não passa de ´sangue que ferve nas veias´, de excesso de energias´, de sede de beleza!”
Desfecho e reflexões para os dias atuais
A belíssima narrativa de Dostoiévski espanta porque ela parece penetrar no feminino, na juventude, e no masculino, no homem “severo”, como ele mesmo descreve-se, como se o autor fosse ambos os personagens ao mesmo tempo. Deixa claro que o sentimento de posse, declarado pelo marido de início, invalida qualquer envolvimento de igual para igual no casamento. A solidão vai pesando cada vez mais para um e outro.
O marido não entende como a mulher pode ser, por vezes, espirituosa, se a sua vida sempre foi tão desgraçada, pobreza, orfandade, maus-tratos na cada onde vivia com as tias.
A mulher que cultiva a lealdade, traço de caráter que forma a sua estatura de mulher, tenta do jeito possível aproximações “estabanadas” no pensar do homem. Mas não há inocentes nem vítimas, não ao julgamento alheio, julgamento que o autor certamente não deseja que leitura desperte.
O homem confessa ao lado da morta “que não é culpado” pelo extremismo dela, optando por um suicídio. Parece convicto, embora ao narrar durante o livro a longa história dos dois chegue a contradições e, mesmo, a questões inexplicáveis.
Dias de trevas da atualidade
Trouxe a história de Dostoiéviski para esse artigo não só por considerar que há um ponto “cego”, absolutamente impossível de iluminar, na comunicação entre homem e mulher, ponto que dá margem a feridas profundas, ressentimentos, desencontros que, em parte, o tempo supera, transformando o relacionamento em amizade ou vício. Mas o embate que faz ambos sofrerem nunca se resolve.
A posse é o grande flagelo de qualquer relacionamento, envolva um casal, filhos, amigos. É um equívoco humano que parece longe de ser abolido, nem os jovens se livram dele, com sua fé na vida, sua energia de luta.
Outro motivo para trazer a criatura dócil a este texto foi perceber como estamos vivendo uma “Babel” de comunicação, a maioria se arroga num castelo de certezas, as certezas de que ouviu o que ouviu (pode ser mera interpretação) e ergue as defesas para relacionamento. Falo dos homens de boa vontade, porque os que sobrevivem das guerras e discórdias, dirigentes de países e das políticas, esses erguem barricadas entre os povos para poder cumprir seus objetivos. Nem um pouco nobres.
Lemos e assistimos atrocidades nos periódicos, no mundo de hoje, talvez a única saída possível seja a autocrítica, antes que os mais vulneráveis renunciem à luta (pelo suicídio, pelo abandono do confronto em função de desesperança, pela agressão injustificada a quem pode ser amigo, aliado, irmão).
Podemos nos tornar todos “bárbaros” se cedermos às mesquinharias que habitam seres humanos (todos as temos, controladas). Tenho visto famílias desmoronarem, casais vivendo farsas, seres mais sensíveis perdidos nos pensamentos persecutórios.
Fiquei uns 15 dias mergulhada na descrença, sem visualizar caminho, mas enquanto há vida, há que se fortalecer o amor ao próximo (porque com esses convivemos), o perdão a atos menores do que os que alimentamos como indesculpáveis na imaginação solitária, a fé em tempos melhores e a força para a luta que esse mundo caótico nos exige cada vez mais. Sem julgamento, sem preconceito, sobretudo, sem medo.
Para quem puder, é ilustrador ler as divagações do marido diante da sua criatura dócil, a esposa sem voz que escolheu a morte por desespero. A conversa dele com ele mesmo tem lições para todos nós!
*jornalista, escritora e eterna militante pelos direitos humanos
Fonte: Jornal Tornado
Fonte: Jornal Tornado
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