Não acho que derrubar estátuas seja um bom caminho, mas a reação
dos recém-conversos defensores da estatuária pública é estranha e
pediria certa análise.
Por Orlando Silva*
Ainda que a derrubada seja um erro, o que é discutível, é normal toda
esta gritaria repentina? É razoável chamar o movimento de ditatorial,
violento e… fascista? Não é estranho que o movimento que colocou o
governo Trump em colapso seja lido apenas ou principalmente por estes
atos?
É importante lembrar que estamos falando em monumentos públicos cuja
principal função é construir uma memória coletiva. Eles ficam espalhados
pela cidade justamente por isso: porque têm a função política clara e
assumida de construir um discurso sobre o passado.
Se eles têm uma missão política no nosso mundo, se estão destinados a
construir uma memória coletiva, então não são sagrados, indiscutíveis e
intocáveis. Se estão dentro de um contexto político, devem ser
discutidos politicamente, devem ser alvo da deliberação pública. Claro
que essa definição é sempre subjetiva, mas uma estátua do presidente
Campos Salles, em uma praça de Campinas, não é a mesma coisa que uma
Pietá de Michelangelo dentro de uma igreja italiana, ainda que esta
também traga em si um discurso.
Alguém pode dizer que não é contra discutir politicamente e mesmo
remover os monumentos, mas é contra retirar à força. Se o autor da
assertiva estiver no campo democrático, sabe que o protesto de rua
acontece quando os canais de deliberação política institucional não são
capazes de canalizar aquele processo, seja porque estão entupidos, seja
porque o caráter questionador da luta está em um patamar que não permite
essa absorção. Em suma, estátuas em locais públicos são política e a
política das ruas é legítima. Para se concordar com isso não é
necessário ser de esquerda, basta ser um liberal de verdade.
Quando olhamos para uma cidade, vemos uma versão da história. Essa
narrativa não é neutra, mas apresenta tanto uma visão sobre o passado
quanto uma posição sobre o presente e o futuro. Fazendo uma corruptela
de uma frase famosa, a cidade dominante do ponto de vista de seus
monumentos é a cidade do discurso dominante.
Às vezes, grandes movimentações de massas têm objetivos mais
imediatos: um aumento de salário, barrar um corte de verbas, derrubar um
personagem da política. Mas, em momentos especiais, estes movimentos
têm sentidos mais profundos, mais estratégicos, ainda que possamos
simpatizar ou não com eles. Nessas horas, as pessoas estão na rua porque
têm outra visão sobre o que foi o passado, o que é o presente e o que
deveria ser o futuro. É natural que, nessas circunstâncias, elas entrem
em choque com esse tipo de discurso sustentado por monumentos e nomes de
logradouros.
Bom lembrar que o palco dessas lutas é justamente a cidade: suas
ruas, praças e avenidas. É nesse espaço público que ocorre esse encontro
um tanto dramático entre estátuas e multidão, as primeiras
representando o mundo que existe, a segunda um novo tempo desejado. As
ruas nas quais a história é feita têm nome e muitas vezes é contra eles
que se luta, que se joga a batalha política sobre o que deve ser o
futuro. Não é compreensível que o confronto se estabeleça? Fico pensando
que as pessoas que estão assim tão ciosas das fortes experiências
estéticas que uma estátua de Nilo Peçanha, na rua da Quitanda,
proporciona, poderiam pensar na dimensão estética desse acontecimento,
desse encontro entre dois discursos.
Durante a Revolução Russa, antes dos bolcheviques chegarem ao poder,
houve ataque massivo aos monumentos do czarismo. As massas tinham ódio
do que eles representavam, do que diziam sobre o passado, o presente e o
futuro. Quando no poder, os bolcheviques se concentraram em retirar
essas referências. Eram fascistas as massas em revolta, os mencheviques e
bolcheviques? Por outro lado, quando essa experiência foi derrotada e
caíram a URSS e o Leste Europeu, as massas atacaram as estátuas erguidas
pelos comunistas, sob aplausos de boa parte dos atuais apaixonados
pelos Borba Gatos de nosso tempo. Independentemente de sua posição sobre
a queda das primeiras experiências socialistas, eu pergunto: eram
fascistas aquelas massas, ou estamos diante de uma espécie de padrão
histórico que se repete nessas situações?
Quando o fascismo, o salazarismo e o franquismo caíram na Península
Ibérica e na Itália, centenas de monumentos foram destruídos pelos
populares. Deveriam ter sido preservados? Isso é discutível. Mas o que
importa para o meu raciocínio: eram ditatoriais, violentas e fascistas
as massas que lutaram contra o fascismo? Essa conclusão parece absurda.
Deveriam os argelinos, haitianos e vietnamitas conviver com os
monumentos aos franceses que os escravizaram, massacraram e destruíram
em nome da manutenção da história?
Uma herança do passado pode ser ressignificada, criticada ou mantida
como lembrete do que não queremos repetir, mas nenhuma dessas atitudes é
intrinsecamente melhor ou mais democrática do que a sua retirada. E,
mais importante, é preciso respeitar quem está lutando por toda a
Humanidade neste momento.
Entendo que haja uma justa preocupação com aonde esse ímpeto poderia
parar. É verdade: grande parte dos maiores feitos artísticos da
humanidade são discursos que refletem as ideias dos setores dominantes
de determinada época, e isso precisa ser discutido. É preciso discutir
democraticamente fronteiras. Durante a Revolução Francesa, por exemplo,
esses limites foram ultrapassados, e o confronto entre passado e
presente levou à destruição de peças de arte que (essas sim!) eram
patrimônio de toda a Humanidade. Mas deveríamos nos perguntar por que
não ocorreu a ninguém razoável chamar Robespierre e Danton de fascistas.
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As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal PCdoB
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