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quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Orlando Silva: O Brasil não precisa de “heróis de toga”



Orlando Silva (PCdoB-SP) participou intensamente da reformulação do "pacote anticrime" de Moro e Bolsonaro, que resultou na lei 13.964/2019, que instituiu o juiz de garantias
Foto: divulgação
A liminar do ministro Luiz Fux, que suspendeu por prazo indeterminado a criação do juiz das garantias, trouxe de volta o debate político sobre a matéria, incluída e aprovada pelo Congresso Nacional no bojo da tramitação do chamado “pacote anticrime”, que entrou em vigor no último dia 23 de janeiro.
Por Orlando Silva*
A decisão, por via monocrática e no recesso dos tribunais, conseguiu o prodígio de afrontar, a um só tempo, os três poderes da República: o Legislativo, que aprovou a lei;, o Executivo, que a sancionou; e o próprio Judiciário, cujo presidente, ministro Dias Toffoli, buscava mediar os prazos e as formas de sua implantação.
Um dos argumentos utilizados por Fux foi: “a complexidade da matéria em análise reclama a reunião de melhores subsídios que indiquem, acima de qualquer dúvida razoável, os reais impactos do juízo das garantias para os diversos interesses tutelados pela Constituição Federal”. Ora, a prevalecer essa linha argumentativa, o parlamento estaria impedido de legislar sobre pautas consideradas por demais “complexas” ou poderia fazê-lo de acordo com parecer prévio do ministro.
É importante registrar que a lei 13.964/2019 foi aprovada pelo parlamento brasileiro após meses de intensos e acalorados debates, sendo que o grupo de trabalho que elaborou a redação final ouviu dezenas de especialistas, em audiências públicas, o que contribuiu para a remoção de muitos pontos problemáticos do projeto, como a ampliação do excludente de ilicitude, o sistema de barganha penal e outros arroubos punitivistas.
Em outras observações, o vice-presidente do Supremo aponta que o tema só poderia ser tocado por iniciativa do próprio judiciário, vez que alteraria sua estrutura, e que não há previsão orçamentária para custear a medida. Não é procedente, tanto que o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já debatia utilizar juízes substitutos, que já pertencem ao serviço público, para a função das garantias, o que elimina ambos os senões levantados por Fux.
Há ainda quem questione como se daria o expediente em comarcas em que apenas um juiz atua. Em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, o decano do Supremo, ministro Celso de Mello foi taxativo: “a própria lei dá a resposta, com todas as letras: nestas situações, os tribunais constituirão um sistema de rodízio de magistrados”. E mais: “o sistema vai se pautar certamente na tabela de substituições automáticas que já existe no âmbito do Judiciário há 50 mil anos”, ironizou.
Como se pode ver, as soluções para a implantação da medida estão aí e podem ser adotadas de acordo com plano a ser traçado pelo próprio poder Judiciário. O que existe, de fato, é um inconformismo por parte de setores e corporações que foram vencidos no debate público sobre a pertinência do juiz das garantias.
Mas o que justifica tal repulsa a um instrumento que tende a dotar a justiça de maior isenção e, consequentemente, diminuir questionamentos? Risco de impunidade não pode ser ou teríamos que admitir que magistrados estão colocando em xeque a atuação deles próprios. Talvez seja pelo culto que se acostumaram a render a juízes que atuam como “xerifes” ou “heróis de toga”, que desejam incutir na sociedade uma visão falsa de dicotomia entre o bem e o mal na luta contra a criminalidade, lógica pela qual os fins justificam os meios.
O juiz das garantias, de acordo com a lei, terá a responsabilidade de atuar na fase de investigação, zelando por sua legalidade, até o recebimento da denúncia, a partir do que tem início a jurisdição do magistrado responsável pelo julgamento. Essa divisão fará com que não haja influência na formação da convicção do segundo juiz com a produção das provas, o que representa um avanço significativo para a garantia de um julgamento imparcial e para a plenitude do sistema acusatório, que estabelece a separação das funções no processo penal.
Tal modelo, com uma ou outra diferenciação, é amplamente utilizado mundo afora. No festejado sistema de justiça da Alemanha, por exemplo, os processos criminais são julgados em órgão colegiado. Países de tradição ibérica, como Portugal e Argentina, também utilizam o instituto. Não há motivo para que o Brasil recuse, por uma canetada, um aperfeiçoamento em seu sistema processual.
A suspensão sine die do juiz das garantias ganhou aplausos de setores identificados com as práticas consagradas pela Operação Lava-Jato, que, malgrado tenha jogado luzes à velha estrutura de corrupção presente no Estado, se demonstrou contaminada pela politização e pouco afeita a respeitar direitos e garantias previstos na Constituição e no Código de Processo Penal.
De outra parte, foi repudiada como desrespeito à separação de poderes e afronta à formulação de amplos segmentos que operam e estudam o direito. Espera-se que o caso vá logo ao plenário do Supremo e não tenha o mesmo destino de outras decisões monocráticas, como a que estendeu o auxílio-moradia a todos os magistrados, que ficou quatro anos parada ao custo de bilhões aos contribuintes.
O Brasil não precisa de falsos heróis, togados ou não. O combate à criminalidade e à corrupção devem ser feitos por um sistema de justiça que garanta a imparcialidade, o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal, premissas sem as quais os indivíduos estarão à mercê do arbítrio do Estado e de seus agentes.

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