A função social da propriedade, base conceitual e jurídica das reformas agrária e urbana, está sob ameaça. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 80, apresentada este ano pelo senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente da República, altera essa definição e os caminhos para sua aplicação.
Por Pedro Biondi, do Brasil de Fato
Com base no entendimento expresso de que a propriedade privada constitui um “bem sagrado”, a proposição modifica os artigos 182 e 186 da Constituição Federal. Entrevistados relataram ao Brasil de Fato que ela beneficia, ao mesmo tempo, especuladores imobiliários, donos de latifúndios improdutivos, o crime organizado e milícias – que têm no domínio territorial e na apropriação do solo urbano uma das suas principais fontes de renda e poder.
A PEC é subscrita por 27 senadores e senadoras – um terço da casa, o que já garante sua tramitação. Constam na lista parlamentares de dez partidos de perfil variado. Entre eles, alguns influentes, como a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde se decide a admissão de todas as matérias legislativas, Simone Tebet (MDB-MS), e os ex-governadores Tasso Jereissati (PSDB-CE), Antonio Anastasia (PSDB-MG), José Maranhão (MDB-PB), Álvaro Dias (Pode-PR) e Omar Aziz (PSD-AM).
No artigo 182, de aplicação no contexto urbano, a redação lista como critérios a atender: parcelamento ou edificação adequados, aproveitamento compatível com a finalidade e preservação do meio ambiente ou do patrimônio histórico, artístico, cultural ou paisagístico. Já o texto em vigor afirma as “exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
O plano é uma das principais leis em âmbito municipal e aprova as diretrizes para o desenvolvimento desejado para a cidade a médio prazo, orientando também a aplicação dos instrumentos criados pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 2001) para o cumprimento da função social da propriedade.
No artigo 186, voltado à realidade rural, permanecem na PEC os parâmetros atuais: aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho, exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Porém, em ambos os casos, a utilização teria de atender “ao menos” uma das exigências listadas – o que quer dizer que pode ser apenas uma.
O projeto exige que o uso se dê “sem ofensa a direitos de terceiros” – abrindo margem para uma interpretação judicial conservadora no caso de uma ocupação em fazenda improdutiva, terreno ocioso ou prédio vago. Além disso, estabelece que eventuais desapropriações se deem por valor de mercado, no lugar da indenização “prévia e justa” prevista hoje. Por fim, um novo degrau é colocado no caminho desse ato, hoje administrativo: a necessidade de uma autorização legislativa ou uma decisão judicial.
Como justificativa, o senador alega que a propriedade privada “deve ser protegida de injustiças”. O objetivo da emenda seria, assim, “evitar arbitrariedades, abusos ou erros de avaliação” nos processos de desapropriação, garantindo cautela na relativização daquele direito. A intenção, acrescenta, é “diminuir a discricionariedade do poder público” nessa vigilância.
Critério único
Para o deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), o texto disfarça a falta de compromisso com os princípios envolvidos e embaralha os componentes da função social ao instituir uma avaliação isolada, permitindo por exemplo que um lote rural abandonado para especulação espere por valorização como se estivesse preservando a mata. “E, se tem aproveitamento econômico, desmata tudo e vai estar cumprindo a função social que foca no trabalho ou a da produtividade”, ilustra.
Coordenador da Frente Parlamentar Mista Ambientalista, ele avalia que o objetivo é “impedir o avanço dos movimentos daqueles que não têm terra para produzir ou casa para morar”. Afinal, segundo Tatto, os dispositivos inviabilizariam o reconhecimento dos direitos de outros grupos sociais, como os povos indígenas, os quilombolas e os extrativistas, e mesmo a delimitação de unidades de conservação, barrando usos coletivistas, comunitários ou voltados ao conjunto da sociedade – destinações que tiram as terras em questão do mercado e da condição de objeto comercializável.
“Isso representa um pensamento hegemônico no governo Jair Bolsonaro (PSL), de afronta à legislação social e ambiental, ao que é de interesse geral da sociedade, para atender um pequeno grupo de proprietários, talvez os mais atrasados do agronegócio”, analisa. Ele lembra que o filho mais velho do presidente também propôs o fim da reserva legal nas propriedades rurais.
Vice-diretora-geral do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), Fernanda Carolina Costa interpreta essa tentativa como uma prática de desconstrução geral de direitos, colocando interesses individuais acima de tudo. Para ela, a PEC articula-se com outras alterações legais e medidas como a flexibilização da regularização fundiária para a população de maior renda, a flexibilização do porte de armas e a Lei 13.838, que altera as regras para registros públicos e, conforme sua análise, favorece a grilagem – falsificação de documentos para tomar posse de áreas ou construções.
Costa descreve as prerrogativas em torno da função social da propriedade como “um feixe de direitos fundamentais para a gente ter um mínimo de paz social”.
Na visão do constitucionalista Luiz Guilherme Arcaro Conci, a PEC rompe com um pacto estabelecido entre proprietários e trabalhadores desde o início do século passado, que impôs condicionantes aos valores que compõem a concepção liberal do Estado. “Nessa linha, a proteção da propriedade privada pelo Estado a sujeitaria a alguns deveres”, pontua o coordenador da pós-graduação em Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. “Essa proposta de emenda é forjada claramente para retroceder nesse pacto.”
“Essa proposta significa um retrocesso profundo na política de moradia, de reforma urbana e de reforma agrária no Brasil”, define o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) Guilherme Boulos. Ele lembra que os princípios que o filho de Bolsonaro combate previnem a especulação na cidade e no campo. “Terras que ficam ociosas ao longo de décadas, esperando o momento de valorização financeira mais propício, às vezes intervindo [os donos] com lobbies [pressões por interesses] no Estado para ter investimentos públicos que a valorizem”, explica. Ele lembra que a grande propriedade rural é parte estruturante da história das elites no país e ressalta que o Brasil “tem mais casa sem gente que gente sem casa”.
Segundo a integrante da União Nacional por Moradia Popular (UNMP) Evaniza Rodrigues, a PEC foi recebida no meio com “muita preocupação e muita indignação”. “A emenda constitucional da reforma urbana foi um marco importantíssimo”, recorda. A reforma propõe cidades mais equilibradas e justas, guiadas pelo bem-estar de toda a população e não apenas pelo lucro imobiliário – e é a função social da propriedade que norteia essa prática. Protocolada na Constituinte, a proposta de emenda de origem popular recebeu 130 mil assinaturas e resultou no capítulo de política urbana da Carta Magna.
“Desde então, conseguimos que municípios do Brasil inteiro inserissem no seu plano diretor mecanismos de arrecadação de mais-valia urbana – ou seja, que terrenos que não cumprem sua função sejam taxados com IPTU progressivo no tempo, sendo proposta a utilização compulsória”, conta a ativista. “Infelizmente, não é de se espantar, mas de se lamentar”, diz a militante, sobre a possível limitação.
“Razoabilidade”
Diante dos questionamentos, a assessoria de Flávio Bolsonaro enviou nota de resposta à reportagem, argumentando que as alterações reduziriam os conflitos e beneficiariam as partes envolvidas. “A função social da terra é importante, mas não pode ser desculpa para desrespeitar algo fundamental como o direito à propriedade”, diz a nota. “A proposta de emenda à Constituição apresentada quer apenas evitar arbitrariedades e injustiças. Garantir um procedimento mais adequado vai, inclusive, diminuir a litigiosidade e reduzir potenciais prejuízos para quem for desapropriado e para quem se beneficiar dessa operação. A propriedade privada é um bem sagrado e deve ser protegida de injustiças. Precisamos de mais razoabilidade nesse processo”, finaliza.
Milícias
Fernanda Carolina Costa, do IBDU, critica o esvaziamento do poder da municipalidade na implementação da política urbana e no enquadramento dos lotes e edificações nas suas diretrizes. “O autor quer criar conflito entre Executivo, Legislativo e Judiciário para criar esse tipo de dificuldade”, aponta.
De acordo com a advogada e urbanista, esse sombreamento pode gerar “feixes de terra sem nenhum tipo de controle”, ampliando as grandes extensões de território sem cobertura estatal já existentes. “Isso interessa a quem?”, questiona. “Quem entra para atuar? É o Estado paralelo, é o crime organizado, são as milícias”.
Costa acrescenta que, no Rio de Janeiro, essas organizações chegam a forçar deslocamentos de pessoas em proporções que remetem a circunstâncias de guerra. “Tiram as pessoas de suas casas, definem quem vai morar onde e a forma de destinação e de uso de áreas inclusive com patrimônio ambiental ou histórico”, descreve.
“Onde tanto o crime organizado quanto as milícias atuam, não interessa a eles trazer as ocupações [de população de baixa renda] para a legalidade”, concorda Evaniza Rodrigues, da UNMP. Para ela, a influência desses grupos no governo e sua proximidade com a família Bolsonaro “é uma das hipóteses” para a motivação da PEC.
“A relação do Flávio Bolsonaro com as milícias é muito direta. É algo muito concreto, é muito mais do que uma ilação”, enfatiza Boulos, do MTST, que disputou a última eleição presidencial pelo PSOL. Ele lembra a proximidade do político com Fabrício Queiroz e as homenagens públicas a milicianos. “E há uma suspeita muito forte, que a quebra do sigilo bancário vai poder confirmar ou não, de que parte desse dinheiro da compra de imóveis, dos valores movimentados pelo Flávio e pelo Queiroz, pode ser lavagem de dinheiro da milícia”, acrescenta.
“Assim, é de se supor que qualquer desregulamentação no uso da terra vai favorecer os negócios imobiliários ilegais das milícias, vai favorecer as máfias urbanas”, finaliza.
O gabinete do senador do PSL não se manifestou sobre esse aspecto.
Resistência
Para se opor a essa e outras iniciativas, “vai ser preciso uma ação no Congresso com os setores democráticos, uma aliança costurada com quem não aceite o desmonte completo de Constituição de 88, e o conjunto dos movimentos”, defende Boulos. “E, ainda, a mobilização de juristas e da sociedade civil como um todo”. Se nenhum coautor mudar de ideia, a PEC precisa de mais 22 votos no Senado, além de 308 deputados e deputadas.
Nilto Tatto ressalta que a mobilização social contra as mudanças no Código Florestal indica um caminho – a Câmara aprovou a Medida Provisória (MP) 867 , mas o presidente do Senado negou-se a votá-la em função do “clamor” dos colegas. “Apesar da conjuntura ruim, a gente sabe que esse tema é muito caro para a sociedade, e que esta não quer retrocesso”, conclui.
“A gente precisa retomar uma campanha de rua mesmo, de sensibilização da sociedade, porque a criminalização das ocupações – chamadas de invasões – acabou ganhando um espaço muito grande na mídia, na voz dos parlamentares, na voz dos governadores”, acrescenta Evaniza Rodrigues, lembrando a defesa, pelo presidente da República, da solução dos litígios “à bala”
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