A entrevista que reproduzimos abaixo foi publicada pelo The Intercept no último dia 03 de junho. Para quem deseja uma análise sem meias-palavras das relações internacionais brasileiras no governo Bolsonaro esta é uma leitura obrigatória.
Fugindo ao esperado comedimento, típico de um veterano diplomata, Samuel Pinheiro faz uma denúncia enfática dos rumos atuais da política externa brasileira ao mesmo tempo em que defende, também enfaticamente, a política de relações externas dos governos Lula e Dilma. O ex-Secretário Geral do Itamaraty chega a esgrimir com os entrevistadores, Rafael Moro Martins e Amanda Audi, sobre a Venezuela, defendendo com vigor o governo Maduro. Preservamos a edição original da entrevista que, por diversas vezes, “corrige” dados apresentados por Samuel. Em uma destas “correções” os entrevistadores citam números divulgados pela manjadíssima ONG Foro Penal (quem quiser saber mais sobre esta organização e sua forma de financiamento, clique aqui – texto em espanhol) para sustentar a tese de que existe “perseguição política” do governo bolivariano contra opositores. Na verdade, a entrevista de Samuel Pinheiro é instigante e, em alguma medida, polêmica, principalmente quando arrisca palpites sobre o futuro do governo Bolsonaro. Em determinado momento, ele diz: “estou muito radical hoje”. Vale a leitura.
Wevergton Brito Lima, editor do i21
Entrevista:
‘Ernesto Araújo é ridículo’, diz número dois do Itamaraty no Governo Lula
O chanceler Ernesto Araújo é “ridículo” e “um louco”. O governo Jair Bolsonaro não deve passar de julho e uma eventual presidência de Hamilton Mourão não deve causar receios de uma nova ditadura militar. É assim que o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães Neto, ex-secretário-geral do Itamaraty durante o governo Lula, avalia o atual cenário político brasileiro.
Pode causar surpresa que um embaixador renomado, com profundas ligações com o PT – Guimarães foi o número dois do Itamaraty no governo Lula, entre 2003 e 2009, abaixo apenas do então chanceler Celso Amorim – relativize a ascensão de um militar à presidência. Mas Guimarães, aos 79 anos, faz a avaliação com tranquilidade: “[Os militares] passaram 30 anos tentando limpar os aspectos negativos da ditadura para eles”, ele nos disse.
Guimarães trabalhou no Itamaraty de 1963 a 2009 e depois foi professor de política internacional e política externa do Instituto Rio Branco, a escola de formação dos diplomatas brasileiros, até 2016. Muito ligado ao PT – mas respeitado por colegas como Paulo Roberto de Almeida, crítico feroz do que chama de “lulo-petismo” –, ele defendeu, ao longo de quase duas horas de conversa, as bandeiras da política externa do governo Lula, inclusive o alinhamento com o chavismo na Venezuela.
“Jeffrey Sachs, economista americano, um comunista conhecido, calculou que 40 mil pessoas morreram na Venezuela por causa das sanções americanas”, disse, irônico – Sachs é conhecido por ter introduzido o plano econômico capitalista em países soviéticos. “Isso foi causado pelo governo do Maduro?”
Guimarães, que costuma pontuar suas afirmações elevando a voz e repetindo os argumentos que acabou de tecer, direcionou suas principais farpas contra Bolsonaro. A tentativa brasileira de intervir na crise política venezuelana, para ele, é “um erro enorme”, e os comentários do ex-militar sobre uma eventual volta de Cristina Kirchner à presidência da Argentina, “um absurdo”.
“Não se dá palpite [em assuntos internos de outras nações], cada país tem sua evolução histórica, suas características, sua autonomia”, ele argumentou. Para Guimarães, Bolsonaro se esquece de que o Brasil é um país subdesenvolvido ao negociar a entrada na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE. “O que um contínuo vai fazer no country club do Rio de Janeiro? Talvez ser garçom. A OCDE é um clube de ricos”, falou. Ao comparar o sistema internacional a um avião, ele disse que o Brasil não tem sequer assento na classe econômica. “Está no compartimento de bagagens.”
Guimarães nos recebeu em seu escritório, uma sala acanhada num prédio comercial simples da Asa Norte de Brasília, a poucos minutos do prédio em que mora – que também já foi endereço, na cidade, de Bolsonaro e Mourão. Leia os principais trechos da conversa.
The Intercept – Em março, em Washington, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que o Brasil passaria a abrir mão do Tratamento Especial Diferenciado, o TED, na Organização Mundial do Comércio em troca de uma indicação para a OCDE. O que significa para o país abrir mão do TED?
Samuel Pinheiro Guimarães – O Tratamento Especial Diferenciado é uma reivindicação histórica dos países subdesenvolvidos. Parte do princípio de que existem países desenvolvidos e países subdesenvolvidos. Vocês já foram ao aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro? Já viram como é ali perto? Já foram ao aeroporto de Zurique? É diferente, né? Aqui é um país subdesenvolvido. Já os desenvolvidos querem extrair o máximo possível das relações de troca. O Brasil se transformou em um país totalmente exportador de produtos primários e importador de manufaturados. Quem é que exporta produtos manufaturados? Os EUA, a Inglaterra, a França, a China. Eu quero saber onde é que vão ser empregados os 13 milhões de desempregados hoje em dia. No campo? Mas o campo é altamente automatizado. Tem que ser na indústria. A maioria desses 13 milhões moram na cidade, e na cidade não se planta nada. Agora, o governo parte do princípio de que [o Brasil] é igual aos EUA, é um país desenvolvido.
Num artigo recente, o senhor disse que a luta pela redistribuição de quotas e de poder de voto no FMI e no Banco Mundial foi abandonada pelo governo brasileiro. Como isso se deu?
Nunca mais ouvi falar nisso. Porque os EUA são contra, o congresso americano é contra, isso diminui o poder americano. Você acha que o presidente Bolsonaro vai lutar para diminuir o poder americano? Eu tenho a impressão que não é bem o caso. Isso, como eles dizem, é confrontação do Brasil com os EUA. Os EUA têm uma estratégia de natureza mundial, que é impedir que em qualquer região do mundo surja um estado ou grupo de estados que possa reduzir a influência deles. Outro ponto interessante: os EUA têm mil bases no exterior, mas nenhuma no Atlântico Sul. É óbvio que a [cessão da] base de Alcântara (no Maranhão, com o acordo de salvaguardas tecnológicas) não tem nada a ver com o lançamento de foguetes. Nós iríamos receber uma quantia irrisória para termos uma parte do território fora do alcance das autoridades brasileiras. Você instala uma pista [de pouso de aviões], de grande dimensão, a pretexto de transportar o material. Uma vez que os EUA entram [num país], não saem mais, não.
Desde que assumiu o posto, o chanceler Ernesto Araújo tem se desentendido com o setor militar do governo Bolsonaro sobre a Venezuela. A crise chegou ao auge com a ida de Araújo aos EUA para um encontro com o secretário de estado Mike Pompeo um dia antes da mal sucedida operação liderada por Juan Guaidó, e a determinação de Bolsonaro de que qualquer decisão envolvendo o país vizinho deve passar pelo Conselho de Defesa Nacional…
O presidente da Câmara já disse que a declaração de guerra é uma competência exclusiva do Congresso. Se você fosse eleito presidente da República, teria que ter a curiosidade de ler a Constituição, né? Para saber quais são os poderes do Executivo, Legislativo, Judiciário, saber que é o presidente da Câmara quem autoriza os pedidos de impeachment. Sozinho. Aparentemente, essa curiosidade não acometeu o presidente Bolsonaro.
Quanto ao chanceler Ernesto Araújo…
(Interrompendo) Eu só falo sobre política, não falo sobre o Ernesto. O Ernesto é uma coisa deste tamanho (sinaliza algo pequeno com a mão). Uma coisa ridícula. É ridículo. Ri-dí-cu-lo (enfático, separando as sílabas). No discurso de formatura dos alunos do Instituto Rio Branco, o ministro Ernesto Araújo comparou o presidente Bolsonaro a Jesus Cristo. E chorou quando fez isso. Isso não existe na história do Brasil e nem na história do mundo, um ministro ter comparado o chefe de Estado a Jesus Cristo.
Várias coisas parecem ser inéditas no governo.
Em parte. Porque o acordo de salvaguardas tecnológicas [de Alcântara] foi negociado na época de Fernando Henrique Cardoso, que teve como seu precursor Fernando Collor. Teve uma pequena interrupção com Itamar Franco, que foi ridicularizado. Por que ele foi ridicularizado? Porque não seguia a mesma política [externa] de Collor. Depois FHC assinou um ato de não-proliferação [de armas nucleares] que é, digamos, o ato mais grave da história do Brasil na política externa.
Por quê?
Porque nós não éramos membros do tratado e [assim] poderíamos, teoricamente, desenvolver armas nucleares. O mundo é dividido em duas classes de Estados: os de primeira classe, que podem deter armas nucleares e são membros permanentes do Conselho de Segurança, e os demais, que não eram obrigados a assinar o tratado de não-proliferação. A pretexto de que isso ia gerar um desarmamento mundial, o Brasil assinou sem que ninguém houvesse pedido.
Um embaixador bastante experiente relatou ter ouvido de um político de alto coturno do Legislativo que Ernesto Araújo é “esquizofrênico”. O que senhor acha dele?
Não tenho capacidade para inferir se ele é uma pessoa esquizofrênica ou não. Eu acho que ele parte de princípios equivocados, que o Brasil enfrentava os EUA [durante os governos do Partido dos Trabalhadores], só se relacionava com governos de esquerda. Isso é um absurdo. O Brasil fez um contrato de compra de caças com a Suécia. Ao que me consta, a Suécia não é um país comunista de esquerda. Fez o contrato do submarino nuclear com a França. É tudo ignorância.
Voltando a Ernesto Araújo, ele tem sido continuamente desautorizado pelos militares. O senhor se lembra de algum governo, no período democrático, de um chanceler se submeter dessa forma ao setor militar do governo?
Não. No período em que eu estava na secretaria-geral [do Itamaraty], nós tínhamos as melhores relações com o ministro da Defesa, os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, [eles eram] extremamente cooperativos. Não havia nenhuma dificuldade, nunca houve.
Na sua visão, o que há hoje entre o Itamaraty e os militares, em um governo que é formado basicamente por militares?
Não, não é formado basicamente por militares. São sete militares de 23 [ministros].
Mas o núcleo duro, por assim dizer, é militar.
O núcleo duro do governo é o ministro da Economia.
Nesse caso, qual é o papel do Itamaraty?
Não sei, não sou ministro das Relações Exteriores, não sou secretário-geral, não me interesso…
Mas o senhor deve acompanhar, naturalmente.
Quem tem a maior influência no Itamaraty, diz a imprensa, é o deputado [federal pelo PSL de São Paulo] Eduardo Bolsonaro, o assessor Filipe Martins, que tem 35 anos (na verdade, tem 31) e uma vasta experiência em política externa sem ter jamais exercido cargo nesta área. São pessoas com visão [de mundo] baseada em seu orientador espiritual, Olavo de Carvalho, que se expressa no Twitter com palavrões seguidos.
O senhor já escreveu que, dado o número de vizinhos, a disparidade de dimensões, os ressentimentos históricos do processo de formação do território brasileiro são motivos para o Brasil nunca interferir nos processos políticos dos Estados vizinhos. Qual o tamanho do erro que pode estar sendo cometido pelo Brasil ao tentar interferir em assuntos internos venezuelanos?
Tentar, não. Está interferindo, sem poder e sem força para tal. Servindo apenas como ajudante dos EUA. É um erro enorme. O Brasil é 50% da América do Sul em território, mais ou menos. Dos outros países, o que tem maior dimensão territorial é a Argentina, que tem um terço do território brasileiro. Os outros são ainda menores. A população do Brasil é cerca de 50% [da do continente], 210 milhões, os outros têm 40 milhões. O Chile tem 15 milhões de habitantes. [Mas] Todo dia nos jornais dizem que nós temos que seguir o modelo do Chile, um país pequeno. O Brasil é um país diferente. Quem já foi ao Paraguai e leu o jornal ABC sabe o que eles pensam do Brasil, que eles foram espoliados, destruídos (na Guerra do Paraguai). E há os ressentimentos entre eles, entre Argentina e Uruguai, entre Argentina e Chile, entre Chile, Peru e Bolívia, entre a Colômbia e o Equador, entre a Colômbia e a Venezuela. Esses países às vezes procuravam a ajuda do Brasil, a mediação do Brasil, o que é uma coisa muito delicada. Isso permitiu ao Brasil, por exemplo, ter ótimas relações com a Colômbia durante o mandato do presidente [Alvaro] Uribe, e depois aquele outro, [Juan] Manuel Santos. (Irônico) E não me consta que o presidente Uribe fosse marxista cultural, nem que fosse ao Foro de São Paulo, e nem que o Foro de São Paulo tivesse essa importância toda. O Foro de São Paulo era uma reunião dos partidos democráticos de esquerda.
O PT não cometeu esse mesmo erro ao dar suporte ao chavismo e, posteriormente, a Maduro?
Na Venezuela, foram realizadas 23 eleições. Todas, exceto as mais recentes, com aprovação do Centro Carter, todas consideradas legítimas, tudo direitinho.
A última não.
Eu fui observador ali, havia candidato da oposição, teve 5 milhões de votos, e os jornais dizem aqui que não houve candidato de oposição. [Houve] Os que não quiseram concorrer!
Alegando que as condições eram desiguais.
Eu estive na Venezuela, toda a imprensa é livre. As televisões, os jornais circulam livremente, esculhambam – esculhambam não, criticam o governo ferozmente. Você deve consultar um estudo do Jeffrey Sachs, economista americano, (irônico) um comunista conhecido, não é? [Dele] e do Mark Weisbrot, que calcularam o número de vítimas decorrentes das sanções americanas. São 40 mil pessoas que morreram por causa das sanções. Isso foi causado pelo governo do Maduro? Só o governo Trump não cometeu erros. Ele [e os presidentes Emmanuel] Macron e [Mauricio] Macri, aliás, muito populares na França e na Argentina. O Macri com 38% da população abaixo da linha de pobreza! (Na verdade, segundo levantamentos mais recentes, são 32%).
Mas o governo Maduro também cometeu erros, não?
Mas quais são os erros de Maduro? Eu quero que você me diga quais são. Você não sabe, porque não tem. É tudo uma onda de propaganda extraordinária que parte do seguinte princípio: o governo é autoritário. Quantos políticos estão presos na Venezuela?
Leopoldo López estava preso.
Leopoldo López! Um!
Mas um preso político já é muita coisa, não?
Esse sujeito é um criminoso, estava preso por razões criminais. Cometeu crimes e depois foi solto. Se você tem num país um sujeito que diz que vai derrubar o governo, o que acontece em geral? Você acha que é uma infração à lei. Acho que é, né? E agora foi solto. Mas quero que você me dê a lista dos presos políticos na Venezuela. (A ong venezuelana Foro Penal estimou, há alguns dias, que mais de 2 mil pessoas foram presas por motivos políticos no país, das quais 857 seguem detidas.)
O senhor acha então que é tudo uma armação contra Maduro?
Mas é claro que é!
Os venezuelanos que chegam ao Brasil, em Roraima, relatam que passavam fome.
Eles podem relatar o que for, inclusive para receber abrigo. Porque, se disser: “Olha, eu estou muito bem lá…”
Mas quem pede abrigo está passando necessidade, não?
Eu acho que o 1,5 milhão de brasileiros que foram para o exterior deviam estar numa situação muito séria também, não? [A Venezuela] É um país que está sob intervenção! Há uma série de sanções, que naturalmente criam grandes dificuldades para a economia, dificuldades de emprego e assim por diante. Você quer o quê? Se fizessem isso com o Brasil, em meia hora o país já tinha se entregado. Meia hora. Tem que entender como funciona o sistema internacional, que não é formado por estados soberanos e iguais. Existe um império, um só, o império americano. Dentro dele, há os Estados Unidos, o centro do império, e os estados que são soberanos, entre aspas, que são províncias de diferentes níveis. Então, sempre que há uma província rebelde, o império tem que reenquadrá-la. Você acha que a Venezuela representa algum risco de segurança para os EUA? Que o exército venezuelano apresenta risco de segurança ao exército americano? Que a Venezuela pode invadir os EUA? Mas é preciso ser exemplar, compreende? Como na escola, quando um menino joga uma bolinha de papel na professora, ela tem que reagir com firmeza, botar de castigo. Senão, amanhã vai estar todo mundo jogando bolinha de papel. Depois de amanhã, apagador de giz; depois, pedra. Há três províncias rebeldes hoje em dia: a Venezuela, o Irã e a Coreia do Norte, onde tem que haver mais cuidado, porque [o país] tem arma nuclear. Se o Iraque tivesse armas de destruição em massa, como foi anunciado na época, não teriam invadido. Há também as províncias de primeiro nível, que têm capacidade legal de ter armas nucleares: Inglaterra, França, China e Rússia – essas duas estão fora do império, são adversárias dele. Se você ler as declarações do (chefe do Comando Sul das forças armadas norte-americanas,) almirante Craig Faller, ele nomeia quem são os países adversários dos EUA. Achar que a Venezuela é um adversário dos EUA é uma coisa absurda.
O senhor acredita que acabará havendo uma intervenção militar estrangeira na Venezuela?
Em hipótese alguma. Para invadir o Iraque, os EUA concentraram na fronteira [do país do oriente médio] 600 mil homens. Antes de invadir. Não se invade um país assim. É complicado. (Na verdade, foram 177 mil soldados, dos quais 130 mil eram norte-americanos. Ainda assim, é quase um terço da população de todo o estado de Roraima, estimada em 576 mil pessoas em 2018.) Isso que houve ataques aéreos antes para destruir as defesas e depois a invasão. E até hoje não se conseguiu dominar a situação. Eles [os EUA] querem montar uma força multilateral, com o Brasil e outros Estados da região, eles naturalmente fornecendo tudo e liderando e querem provocar dentro da Venezuela, com as dificuldades humanitárias e econômicas de todo tipo – eles cortaram tudo, até acesso aos bancos. Para lá enfrentar a China e a Rússia. Tudo isso é um jogo muito difícil, muito complicado, muito delicado.
Qual o risco para o Brasil de ter um tabuleiro dessa nova guerra fria na sua fronteira?
Não tem nenhuma vantagem para nós. Vamos supor que o Macri perca na Argentina, o que é uma probabilidade, segundo os jornais. E o presidente Bolsonaro já aproveitou a oportunidade para intervir na política interna da Argentina, ao declarar que [a eventual eleição de Cristina Kirchner] seria criar “uma nova Venezuela ao sul do Brasil”. Um absurdo, contraria todos os nossos interesses. A Argentina é um dos principais parceiros comerciais, de investimentos, grande parte do turismo no Brasil é de argentinos. Não se dá palpite, cada país tem sua evolução histórica, suas características, sua autonomia. Isso é que permite haver um certo sistema internacional, ou pelo menos a aparência dele, para organizar certas coisas até um certo limite. Então, tudo isso só nos prejudica no longo prazo. [O Brasil] Não ganha nada, não ganhou nem a questão da OCDE agora, apesar de fazer uma concessão enorme. O que um contínuo vai fazer no country club do Rio de Janeiro? Talvez ser garçom. A OCDE é um clube de ricos. Tem o México, que os EUA botaram para dentro devido ao Nafta. Mas não é um país desenvolvido, basta acompanhar o noticiário.
Mostramos, há alguns dias, que o BID tem um plano preparado para irrigar a Venezuela com bilhões de dólares assim que Nicolás Maduro seja derrubado. É uma notícia que o surpreende? Qual a força do governo dos EUA num organismo multilateral mas sediado em Washington e do qual os próprios EUA são os principais acionistas? Até que ponto instituições como o BID são usadas pela Casa Branca para atingir seus interesses?
[O governo dos EUA é o] Principal acionista e comandante da área operacional, tanto do Banco Mundial quanto do BID. Há muitos anos atrás, creio que no governo [do republicano Ronald] Reagan, se falou em mudanças sobre o Fundo Monetário Internacional. Daí o secretário do Tesouro norte-americano foi ao congresso de lá dar um depoimento sobre a importância do FMI e explicou o seguinte: o Fundo permite que os EUA imponham a sua política sem aparecer. O Departamento do Tesouro tem enorme influência sobre esses organismos. Nada é aprovado sem os EUA, nada. Sempre foi assim. (Irônico) Desculpe, eu estou muito radical hoje (ri). Deveria estar menos radical. Mas você viu o editorial da Folha de hoje? É de uma violência extraordinária: [fala em] ‘bando de lunáticos” que cercam o presidente. Bando de lunáticos!
O senhor concorda?
Estou só dizendo o que diz o editorial da Folha. Os editoriais da Folha, do Estado, têm sido muito críticos, muito contundentes. Como eu dizia lá atrás, há províncias de primeiro grau, que se sentam na classe executiva. Mas o piloto não vai à classe executiva perguntar como deve conduzir o avião. Nunca os EUA perguntam à França, à Inglaterra, o que fazer. Vão lá e fazem. Depois vem um pessoal tipo Japão, Alemanha, que foram adversários na guerra, mas também não são muito escutados. Em seguida, aqueles europeus tipo Itália, Espanha, Portugal (novamente irônico), aquele lixo mestiço, católico, papista. Depois a Europa oriental, que [para os EUA] não têm a menor importância…
Usando a metáfora que o senhor fez há pouco, o Brasil está na classe econômica do avião?
Não. Está no compartimento de bagagens.
Um veterano embaixador nos disse que Ernesto Araújo promoveu uma “revolução cultural como a chinesa” no Itamaraty, ao subverter a hierarquia colocando gente com menos tempo de carreira para comandar diplomatas veteranos. São ministros de segunda classe mandando em embaixadores, ou coronéis mandando em generais. Qual o efeito disso num órgão afeito à tradição e à hierarquia como o Itamaraty?
Não é que é afeito à hierarquia, é que [em relações exteriores] experiência conta. Quando você entra no Itamaraty, ainda que seja um gênio, você será um subordinado. Depois, vira chefe de divisão, depois de departamento, depois subsecretário. Ao exterior, primeiro se vai como secretário, depois conselheiro, depois ministro, e vai adquirindo experiência observando os outros, vendo as diferentes situações. Se você for uma pessoa que não tem experiência, para os outros países é uma festa.
Tem sido?
É claro, é só você observar. Uma festa. Nenhum ministério tem uma visão global [do governo] além do Itamaraty e, um pouco, das forças armadas. A chancelaria desenvolve a experiência no trato com os outros estados, que têm os seus interesses. Existe a experiência na negociação. Se você chega e tira as pessoas mais experientes, enfraquece o órgão central de contato com outros estados. Isso prejudica o país, e é tudo que os outros querem.
O atual Itamaraty está sendo ingênuo, então?
Não. Se você parte de uma visão de mundo em que existe o marxismo cultural e que a ONU está aí (começa a rir) para prejudicar o Brasil… É uma visão simplista, ingênua, equivocada.
O chanceler Ernesto Araújo tem um auxiliar de fora do Itamaraty: Filipe Martins, indicado por Olavo de Carvalho.
Não o conheço, nunca o vi na minha vida…
O papel de Marco Aurélio Garcia, que ocupou o mesmo cargo no governo Lula, não foi o mesmo?
Não, não. Ele nunca influiu no Itamaraty, nunca pretendeu [fazer isso], que eu saiba, sempre teve uma posição muito cooperativa. Tinha grande influência junto ao presidente [Lula], desde 1980, na área internacional do PT.
O governo Bolsonaro e seu chanceler dizem que as relações brasileiras com os EUA foram “negligenciadas” nos últimos anos, que a política sul-sul era movida por ideologia. O que o senhor pode dizer a respeito?
Que não é verdade. O presidente Lula conhecia perfeitamente a importância dos EUA – o que não significa subserviência. Ele foi várias vezes aos Estados Unidos, foi recebido com a maior consideração, houve manifestações de [Barack] Obama sobre Lula, antes por [George W.] Bush. Mas as pessoas inventam coisas. O Brasil sabia, em sua campanha por um assento permanente no Conselho de Segurança [da ONU], que o apoio dos EUA era fundamental, assim como da França, Inglaterra, Rússia e China, os cinco membros permanentes. Pode ver os números de comércio com os EUA, a Europa, não caíram. O ministro Celso Amorim tinha as melhores relações com os secretários de estado, inclusive com [a republicana] Condoleeza Rice.
O governo brasileiro tem negado a importância da ONU e de organismos multilaterais surgidos após o fim da segunda guerra. Em fevereiro, Ernesto Araújo foi à Polônia participar de um encontro convocado pelo governo Trump para pressionar o Irã. Lá, ele expressou interesse em “desenvolver relações próximas com outros países do Grupo de Visegrado e com a Itália”, países governados pela extrema direita ou por coalizões de que ela faz parte…
(Irônico) Ele [Araújo] disse que a Polônia é um país de enorme potencial econômico. No reino da fantasia, tudo é possível.
O senhor acha que há, agora, um grau inédito de politização da política externa brasileira?
Eles fazem o que acusam os outros de fazerem! O sogro dele (de Ernesto Araújo, o embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa) exerceu altas funções [no Itamaraty] durante o governo do PT, um homem conservador – e meu amigo, aliás. Um homem correto, educado, conservador, que exerceu funções normais. Ninguém foi perseguido.
Já ouvimos que Seixas Corrêa está bastante embaraçado com o que Ernesto Araújo vem dizendo…
Claro, com um louco dentro de casa… Ele não me disse nada, nem eu ia perguntar, é uma coisa constrangedora. O marido da filha, você tem que defender minimamente.
Um embaixador graduado com quem conversei me disse ver organismos multilaterais como a ONU em risco como nunca desde seu surgimento. O senhor concorda?
A carta das Nações Unidas é o único tratado que estabelece as normas da convivência internacional: autodeterminação dos povos, soberania, igualdade entre os Estados, assim por diante. A gente sabe que não é bem assim, mas está lá. E tem mecanismos de negociação e cooperação em prol da segurança e da paz internacional, aos quais também podemos fazer observações. Os países, na ONU e nas agências especializadas, negociam acordos, muitos dos quais são do interesse do Brasil: sobre florestas, meio ambiente em geral, acordos comerciais. Então, você precisa de apoio de outros países.
Um Itamaraty que é parte de um governo que visa combater o comunismo pode azedar a relação do Brasil com a China, o país comunista que é nosso principal parceiro comercial?
Acredito que os chineses sabem da importância que tem para eles a relação com o Brasil, a importância do comércio, a perspectiva de investimentos chineses no Brasil, até para garantir o abastecimento deles com produtos primários como minério de ferro, soja. Eles não vão criar nenhum caso. Nenhum. Sabem que tudo é passageiro, e pode ser até que passe mais depressa do que se pense.
O senhor acha isso? Qual sua impressão?
Julho.
O que, em julho? Um impeachment? E aí assume Mourão.
Naturalmente. No cardápio político, hoje em dia, Bolsonaro está sendo servido. O prato alternativo que se pode escolher é Mourão. Outros pratos, como revolução socialista e proletária, estão em falta. Assembleia nacional constituinte? Também não está sendo servido. O que tem é o Mourão. Você pode não gostar, achar que é a volta dos militares, achar o que quiser.
Não o preocupa uma eventual volta dos militares ao poder?
De forma alguma. Por várias razões. Primeiro porque temos um governo ideológico e que divide o país, promove o antagonismo social todos os dias. Agora, liberou as pessoas a transitarem com armas carregadas. É uma coisa inacreditável. Temos 63 mil mortes por ano, em toda a Guerra do Vietnã os EUA não perderam o que morre no Brasil por ano. É um governo que promove ódio racial, todo tipo de confronto na sociedade. Isso é uma coisa muito perigosa. O governador do Rio subiu num helicóptero para acompanhar uma ação em que sujeitos iam matar pessoas. Isso é uma loucura. O general Mourão, desde que tomou posse – antes, não – só fala a coisa certa. Até julho o governo tem que aprovar a [reforma da] previdência, alguma coisa tem que aprovar, porque estão achando que vai ser um milagre, se aprova a previdência e tudo vai se resolver.
Vamos supor que Bolsonaro de fato deixe o cargo, sofra um impeachment. Não é arriscado termos os militares de volta no comando do país?
Não. Em qualquer país do mundo que se respeite, os militares fazem parte da sociedade, não são contra a sociedade. Nos EUA, você acha que o establishment critica os militares? Na França? Na Alemanha? Na Inglaterra? Mas aqui criou-se essa ideia de sociedade civil de um lado e os militares do outro. Foi o príncipe dos sociólogos quem fez isso (irônico, se referindo ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso). Isso criou uma situação em que, primeiro, se tirou a responsabilidade dos civis que apoiaram a ditadura e que muito se beneficiaram, mais do que os militares, que ficaram com a culpa, mas não ficaram ricos. A Globo se criou durante a ditadura, são multimilionários. Os bancos, a mesma coisa. Esse conceito permitiu dizer: “Olha, a ditadura foi uma coisa militar. Aqui estamos nós, os civis, que nunca nos beneficiamos com ela, nunca enriquecemos nela.” Enriqueceram, e muito. Com aquele crescimento muito alto (da economia nos primeiros anos da década de 1970, época do chamado “milagre econômico” brasileiro) com arrocho salarial, eles ficaram milionários, empresários como Gerdau ficaram milionários.
O senhor não vê nenhum risco de uma “recaída” dos militares, um novo AI-2 (o segundo ato institucional decretado pela ditadura, de 1965, que acabou com as eleições diretas para presidente, extinguiu partidos políticos e permitiu uma intervenção do poder Executivo no Judiciário)?
Para quê? Não vale a pena. [Os militares] Passaram 30 anos tentando limpar os aspectos negativos da ditadura para eles. Veio o Bolsonaro e o tempo todo relembra a ditadura. Eles ficam horrorizados com isso. As pesquisas de opinião mostram que os militares são um dos grupos que têm mais confiança da população brasileira. Conseguiram isso, e o Bolsonaro passa o tempo todo lembrando da ditadura, do [ditador chileno Augusto] Pinochet, do [ditador paraguaio Alfredo] Stroessner, do [coronel Carlos Alberto] Brilhante Ustra (um dos principais comandantes da tortura de adversários do regime militar).
Mourão também fez elogios a ele.
Antes de ser vice-presidente. De lá para cá, ele é monitorado pelo alto-comando. Ele não fala por ele, tanto que não é contestado, reparou? Não há nenhum general, da ativa ou da reserva, que tenha contestado Mourão publicamente. Pode ser que eles discutam [internamente], mas publicamente não vi nenhuma declaração. Porque eles sabem que [um eventual fracasso do governo Bolsonaro] vai bater lá neles, entende? Essa confusão que o Bolsonaro está armando, esse caldo de antagonismo, vai bater neles. E não interessa a eles [uma nova ditadura], porque não é mais moda no mundo, não é? Teve a moda das ditaduras militares na América Latina, Brasil, Argentina, toda parte. Hoje em dia, não é mais assim.
Fonte: The Intercept Brasil, via i21
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