Na porta da igreja de São Domingos, no bairro de Perdizes, na capital paulista, faz ponto um pequeno grupo de pessoas em situação de rua. Dormem em uma construção paralisada por razões judiciais ou à porta do templo. De dia, ganham algum dinheiro em troca de vigiar carros que por ali estacionam. São todos jovens e, alguns, notoriamente travestis que contraíram HIV e recebem cuidados periódicos no Hospital Emílio Ribas.
Por Frei Betto*
A ninguém incomodam, exceto pedir dinheiro aos vizinhos alegando que ainda não tomaram café da manhã ou almoçaram. Porém, quando se embriagam ou se drogam, ficam excitados, falam alto, discutem entre si, o que incomoda a vizinhança.
Dia desses, paroquianos se queixaram desse incômodo. Insistiram ser preciso tomar providências para tirá-los dali. Como? A rua é pública e, como dizia Castro Alves, “a praça é do povo como o céu é do condor”. Chamar a polícia? Mas, por quê? Não roubam, não agridem ninguém, e nem há indícios de que fazem tráfico de drogas –embora alguns sejam usuários, como centenas entre os 15 mil moradores de rua, segundo a Prefeitura, que se espalham pelas calçadas da cidade de São Paulo.
Diante da queixa, lembrei aos paroquianos que, antes de eles adotarem aquele local como ponto, havia ali frequentes roubos de carros, sobretudo à noite, quando alunos da PUC ocupam as ruas vizinhas. Meu carro sofreu tentativa de furto duas vezes, salvo pelo eficiente alarme.
Perguntei aos queixosos: “Depois que eles se instalaram aqui, vocês têm notícias de roubos?”. Ninguém tinha. Expliquei, então, a razão: morador de rua é antídoto ao ladrão. Ele sabe que, se houver roubo na rua que ele frequenta, com certeza a vizinhança o apontará como culpado. É como o caso da madame que não lembra onde escondeu as joias e, de cara, põe a culpa na faxineira inocente.
Se morador de rua é acusado de roubo, a polícia, para satisfazer a ira da vizinhança, trata de levá-lo e soltá-lo mais adiante. A polícia, sim, sabe que não se pode confundir morador de rua com bandido. Se um bandido entra na região ocupada por moradores de rua, eles são os primeiros a identificá-lo e a expulsá-lo dali, pois têm consciência de que, comprovado o roubo, a culpa recairá sobre eles.
Uma vizinha veio aflita falar comigo, e me mostrou as cartas endereçadas à filha dela, de 16 anos, pelo homem que dormia na praça em frente à casa da família. Muito bem escritas e respeitosas. “Como pode ser morador de rua uma pessoa que escreve tão bem assim?”, indagou ela. “Temo que ele queira abusar de minha filha.” Perguntei, então: “Você já conversou com ele?”. A resposta veio negativa. Fui falar com o suspeito. Disse que tinha segundo ano de medicina e, levado pela fase hippie, quando se drogava, largou tudo para viver “em total liberdade nas ruas”. A notícia se espalhou e a vizinhança o adotou: ele ganhou quentinhas, garagem aberta para se abrigar em noites de chuva, etc. O rapaz sumiu. Com certeza, para preservar sua independência.
Nossa paróquia, todas as segundas-feiras, recebe mais de cem moradores de rua para almoçar na quadra de esporte atrás da igreja. Ali, eles se banham, recebem roupas limpas e agasalhos. E comem fartamente a refeição preparada por voluntários que trazem os alimentos, cozinham e servem.
Um dos frequentadores me disse: “Frei, aqui é bom porque a comida tem sustança. Sabe por que muitos de nós não têm dentes? Porque essa gente que nos acorda de madrugada para dar comida quase sempre só oferece sopa. E pra que dente se não tem uso?”.
É óbvio que há exceções, como a ocorrida no Rio de Janeiro, no final de julho, quando um morador de rua, com sérios problemas psiquiátricos, esfaqueou três pessoas. Quem transita pelo centro de São Paulo se depara, a cada passo, com pessoas estiradas nas calçadas. No máximo pedem dinheiro ou comida.
Com o desemprego de 13 milhões de brasileiros, tende a crescer o número de moradores de rua. Enquanto a causa que os produz – o agravamento das desigualdades sociais – não for combatida, eles se multiplicarão.
Morador de rua não é caso de polícia. É caso de política.
* Frei Betto, frade dominicano, jornalista e escritor, é autor de mais de 60 livros, como Batismo de Sangue
Blog do Dr. Kalil (UOL)
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