Trabalhadores da aldeia de Deir el-Medina promoveram, há 3.172 anos, a primeira greve de que se tem registro. Nesta entrevista, o historiador Thomas de Toledo, especialista em Egito Antigo, reconstrói a histórica paralisação.
Por André Cintra
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Há mais de três milênios, um povoado às margens do Rio Nilo, no Egito Antigo, foi palco da primeira greve conhecida na História. Devido a sucessivos atrasos no pagamento dos salários, os operários da aldeia de Deir el-Medina – responsáveis pela construção das tumbas do Vale dos Reis – cruzaram os braços e surpreenderam o reinado de Ramsés III. A data: 1155 a.C – ou, precisamente, 3.172 anos atrás.
“Os operários se organizaram, elaboraram uma pauta e uma estratégia. Exigiam algo como os pagamentos atrasados, a reposição salarial das perdas inflacionárias, melhoria nas condições de trabalho e maquiagem para trabalharem debaixo do sol”, explica Thomas de Toledo, historiador pela USP e mestre em Desenvolvimento Econômico pelo Unicamp. “Eram trabalhadores extremamente qualificados, que construíam as melhores tumbas da época, destinadas ao rei e seus familiares.”
Nesta entrevista ao Portal da Fitmetal, Thomas – que é especialista em Egito Antigo – faz um retrato da sociedade egípcia no período, com ênfase na divisão de classes e nas relações de trabalho. Em sua opinião, a histórica greve “no coração daquele que era o maior Império de seu tempo” pode servir de inspiração. “É difícil dizer se a luta de classes surgiu no Egito, mas até hoje não há documento que mencione uma greve anterior à de Deir al-Medina no mundo. Assim, mesmo os egípcios parecendo tão distantes, eles têm muito a ensinar ao mundo de hoje.”
Uma das versões sobre a primeira greve na história da humanidade aponta para uma manifestação dos operários do vilarejo de Deir al-Medina, no tempo de Ramsés III. Em que contexto essa greve aconteceu?
Thomas de Toledo: A greve ocorreu no ano 29 de Ramsés III, ou em 1.155 a.C – portanto, há 3.172 anos. O Antigo Egito vinha de uma fase gloriosa e desenvolvida – o Período Raméssida –, em que se destacou o reinado Ramsés II, o Grande. Esse monarca governou por 67 anos e espalhou seu legado em obras públicas por todo o Egito e mesmo no exterior, construindo cidades, templos, palácios e colossos. Trinta anos depois, teve início o reinado de Ramsés III, considerado o último dos grandes reis egípcios, por suas batalhas que defenderam o país de invasões estrangeiras.
Contudo, era uma época conturbada. O Egito tinha dificuldade em manter suas posses imperiais no Levante (Palestina, Líbano e Síria), bem como na Líbia e na Núbia (atual Sudão). Este contexto coincide com o período da transição da Era do Bronze para a Era do Ferro. As rotas comerciais se desmantelavam, ao mesmo tempo em que as invasões desmontavam Impérios e Estados no Oriente Próximo e no Mediterrânio. No Egito, é o começo da queda do Império – um momento em que a luta de classes ficou evidente.
Como estava constituída a sociedade egípcia? Qual era, precisamente, a divisão de classes?
Para entender a sociedade egípcia e sua divisão de classes, partiremos de um pressuposto diferente da Bíblia, dos relatos gregos e de Hollywood. Também deixaremos de lado aquelas representações de pirâmides sociais que mostram o faraó no topo e escravos na base – uma divisão extremamente equivocada e pouco explicativa da complexidade do Antigo Egito. Partiremos da materialidade da mais experimental das ciências humanas: a arqueologia.
O sepultamento dos mortos revela muito das condições sociais quando vivos. Os reis, rainhas e nobres (sumo-sacerdotes e generais militares) possuíam tumbas luxuosas, onde eram sepultados junto aos tesouros de que necessitavam para o pós-vida. Já os sacerdotes, escribas, operários – profissões intermediárias na estrutura social – tinham tumbas mais modestas, mas nem por isso menos interessantes.
Quanto aos camponeses (grande maioria da população), havia distintas ordens de grandeza: servos, pequenos camponeses familiares, latifundiários, além de uma enorme quantidade de funcionários que trabalhavam nas terras dos templos. Cada qual era sepultado de acordo com sua riqueza em vida ou pelo reconhecimento de algo valioso para a comunidade, seja espiritual, político, militar ou cultural.
Há registros da existência de comerciantes, alguns associados ao Estado e outros “independentes”. Mas não existia uma burguesia que pensasse como classe ou tivesse papel central naquela sociedade. Havia um tipo de trabalho compulsório a prisioneiros de guerra estrangeiros que não pode ser considerado escravidão nos termos que faziam os gregos, romanos e depois os portugueses no Brasil, pois não havia mercado de gente.
O que as pesquisas sobre esse período mostram acerca das relações de trabalho?
O que mostra a arqueologia (baseada em documentos, escavações de tumbas e estudos baseados em materialidade) é que a relação social de produção predominante no Antigo Egito era de assalariamento. Mas o sistema não era como o de hoje, no qual se paga com dinheiro. Naquele contexto, pagava-se com os produtos mais comuns, como rações de trigo e cevada, que eram matérias-primas para pão, cerveja, bolos e sopas.
Para historiadores econômicos, esses documentos ajudam a entender a luta de classes no Antigo Egito. O trabalho assalariado – tanto no Antigo Egito quanto no capitalismo atual – não significava trabalho livre. Ao contrário, foi um método mais sofisticado de exploração do trabalho, que tinha grandes efeitos microeconômicos e um importante papel no dinamismo da economia. Ou seja, o assalariamento no Antigo Egito não tornava sua elite menos exploradora do que outras que se baseavam na escravidão. Tratava-se, sim, de uma elite mais sofisticada no tipo de relação social de produção.
E em Deir al-Medina, palco da greve, como se davam essas relações?
Deir al-Medina era um povoado próximo à atual Luxor, no sul do Egito. Escavações nessa região encontraram registros importantes – o chamado “poço” da vila, uma espécie de lixão, foi um dos mais incríveis achados arqueológicos. Nele estavam anotações em óstracos dos preços dos principais produtos em vários períodos da história local, tais como trigo, cevada, pão, cerveja, prata, ouro, cobre, burro, etc.
Por cerca de cinco séculos, os operários construtores das tumbas do Vale dos Reis habitaram essa região. Eram trabalhadores extremamente qualificados, que construíam as melhores tumbas da época, destinadas ao rei e seus familiares. Cabia-lhes escavar túneis na rocha, desenhar representações míticas que o rei encontraria no além-vida, talhar sarcófagos, objetos mágicos e itens sagrados a serem usados pelo finado no além. As jornadas eram intensas. Mas, quando os trabalhadores recebiam o salário, era uma festa na comunidade – eles produziam cerveja e se embebedavam.
O salário mensal de um trabalhador comum de Deir Al Medina era 5,5 khar – sendo 4 khar de trigo e 1,5 khar de cevada (cada khar equivalia a 76,8 litros). Um capataz e um escriba ganhavam mais: 7,5 khar – ou o equivalente a 15 deben de cobre. Médicos tinham o salário básico de 1,5 khar, mas recebiam adicionais por consulta. Para completar a renda, havia bicos com artesanatos, obras, feitiços ou o que ajudasse a fechar a conta. O problema é que, como mostram os documentos, a oscilação do preço do trigo e da cevada no mercado produzia o efeito da queda do poder de compra. Os conflitos de classe ocorriam, mas os registros são escassos, exceto pela famosa greve do ano 29 de Ramsés III.
Sobre essa primeira greve, quais foram suas motivações? De que maneira o protesto dos operários foi organizado?
Durante o reinado de Ramsés II, período de maior abundância econômica, não ocorriam atrasos nos pagamentos de Deir al-Medina. Mas os reis que o sucederam passaram a atrasar cada vez mais – até que, no reinado de Ramsés III, eclodiu a greve. Há papiros com registros de tentativas inócuas de pedido dos pagamentos – os trabalhadores passavam fome, mas o Estado não pagava o que devia.
Com isso, os operários se organizaram, elaboraram uma pauta e uma estratégia. Exigiam algo como os pagamentos atrasados, a reposição salarial das perdas inflacionárias, melhoria nas condições de trabalho e maquiagem para trabalharem debaixo do sol. Obviamente que isso tudo era dito na linguagem da época, evocando símbolos, costumes e visões de mundo. Sequer havia palavra para salário – quem dirá para inflação e greve.
Mas o mais interessante foi a estratégia traçada pelo movimento. Os trabalhadores desceram o povoado em marcha até o templo funerário de Ramsés II e lá tomaram as oferendas que eram deixadas ao rei finado. Foi um estouro de consciência de classe: se os trabalhadores vivos não estavam recebendo comida, como um faraó morto poderia ter seu templo funerário abarrotado de oferendas para garantir sua imortalidade no além?
Qual foi o desfecho da manifestação?
Tudo parece indicar que a pauta foi vitoriosa – a reivindicação dos grevistas teria sido parcial ou totalmente atendida. Mas, para afirmar isso seguramente, é necessário aprofundar no estudo dos papiros – realizar uma maior investigação.
A greve teve repercussão, a ponto de assustar os governantes?
O movimento dos trabalhadores ajudou a abalar as estruturas do Império Egípcio. Ramsés III enfrentou invasões estrangeiras e resistiu. No período de seu reinado, ocorreu uma catástrofe econômica em todo o Oriente Próximo e suas consequências foram imensas no Egito. Essa conturbada conjuntura pode estar relacionada a uma das causas do atraso do pagamento aos trabalhadores que motivou a greve.
Dois anos depois da greve, Ramsés III foi assassinado por uma conspiração do Harém Real – uma instituição do Estado que reunia as centenas de esposas do faraó, representando suas alianças políticas internas e externas. As rainhas exerciam papel proeminente na vida política egípcia. Todo rei tinha uma rainha que recebia o título de “Mãe de Deus” – ou seja, ela seria a esposa escolhida para gerar o sucessor do faraó. Numa disputa entre as esposas para garantir ao filho o direito de suceder o rei, Ramsés III foi assassinado. Seu filho primogênito, Ramsés IV, sobreviveu e liderou uma caça às bruxas, perseguindo todos os conspiradores.
Não se sabe se há relação entre a conspiração do Harém e a greve. Provavelmente não – a greve expunha uma luta de classes, enquanto a conspiração do Harém era fruto de uma disputa palaciana. Contudo, a ocupação de um templo funerário de um faraó, a paralisação dos trabalhos em Deir al-Medina e a provável vitória dos grevistas puseram a autoridade real em xeque e, assim, podem ter dado combustível à conspiração que levou ao seu óbito. É preciso pesquisar mais a fundo o que aconteceu.
O papiro que relata boa parte dessa greve está no Museu de Turim. Por que um documento histórico dessa importância não está hoje no próprio Egito?
A história da Arqueologia é indissociável do imperialismo. A maior parte dos acervos dos museus da Europa e dos Estados Unidos foi formada por peças saqueadas dos países colonizados. O Museu de Turim, fundado em 1824 com peças adquiridas do cônsul francês no Egito, é hoje um dos mais bem equipados com conteúdo egípcio no mundo. Há diversos papiros, óstracos e estelas sobre o contexto, mas alguns não estão bem conservados.
O problema é que, na prática, essas peças foram roubadas e até hoje o governo do Egito luta para recuperar seus objetos, espalhados pelo Louvre, British, Ashmolean, Metropolitan e tantos outros. Até mesmo no Museu Nacional do Rio de Janeiro há peças egípcias. Os egípcios consideram como doação apenas as peças cedidas após o governo de Gamal Abdul Nasser. Antes disso, quando o Egito estava sob ocupação colonial britânica ou francesa, eles consideram que os objetos foram roubados e, portanto, devem ser devolvidos.
O que os estudos sobre o Egito Antigo ainda têm a nos revelar e ensinar?
A Egiptologia é uma ciência nascida a partir da decifração dos hieróglifos egípcios por Champolion, em 1822, e segue sendo um campo extremamente fértil para a pesquisa. Há estudos sobre política, economia, sociedade, cultura, arquitetura, engenharia, religião, genética e tudo o que se possa imaginar sobre essa complexa e vibrante civilização. Muitos papiros, estelas, óstracos e fragmentos de registros espalhados pelo mundo aguardam para serem traduzidos e estudados.
É difícil dizer se a luta de classes surgiu no Egito, mas até hoje não há documento que mencione uma greve anterior à de Deir al-Medina no mundo. Assim, mesmo os egípcios parecendo tão distantes, eles têm muito a ensinar ao mundo de hoje. Como cientistas, devemos olhar a materialidade, o registro e as informações que possam demonstrar como tudo ocorreu. Isso significa quebrar as crenças fabricadas pela Bíblia, por Hollywood e por sensacionalistas que procuram colocar extraterrestres em tudo. É preciso olhar o que o Egito tem a dizer sobre si a partir dele mesmo, mas sem desgarrar-se do referencial crítico das ciências humanas.
De qualquer forma, a greve de Deir al-Medina mostra que, mesmo no coração daquele que era o maior Império de seu tempo, os trabalhadores conseguiram construir uma pauta, uma agenda própria e uma estratégia de resistência, que provavelmente foi vitoriosa. Que essa ousadia dos operários egípcios inspire os brasileiros a resistirem ao ataque a seus direitos, desferido pelo golpe em curso
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