Duas amigas, duas histórias distintas. Uma assume a prostituição, a outra disfarça. Na Praça da Lagoinha, Regina e Rita dividem o mesmo ponto com outras mulheres de idade avançada
00:00 · 30.06.2018
Num dos bancos da Praça da Lagoinha, no Centro de Fortaleza, Regina e Rita se encontram quase diariamente. Elas dividem o mesmo "ponto" com outras mulheres que, apesar da idade avançada, continuam fazendo programas. Com 60 e 54 anos, respectivamente, ambas atuam na mesma área, porém, revelam histórias distintas.
A mais velha fala abertamente: "eu sou da vida e sempre gostei da coisa". A amiga, mais discreta, diz ser vendedora e, nas horas de folga, vai à praça para atender seus clientes.
Regina está bem acima do peso, já perdeu a silhueta de outrora e até alguns dentes, porém ainda guarda traços de beleza. Veste-se de forma discreta, calça legging e blusa na cor preta. Nos pés, rasteirinhas deixam à mostra as unhas pintadas de vermelho. No rosto, nada de maquiagem. Nenhum acessório, nem bolsa, nada.
Há mais de 10 anos, quase que diariamente, ela deixa sua casa no Bom Jardim para bater o ponto na região central de Fortaleza. Aos 60 anos, fala em alto e bom tom que não nega fogo. "Aqui é tudo quente ainda. Tenho experiência que as mais novas não têm. E faço sem pressa. Os homens gostam assim. Se eu pegasse ele, referindo-se ao repórter, eu faria um estrago, diz com a certeza de quem já percorreu bares, cabarés, prostíbulos, praças e ruas de Fortaleza por mais de 40 anos.
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Filha de mãe peruana, nasceu na Região Norte e veio de navio para o Ceará, aos 13 anos, trazida por uma família adotiva. Aos 20 anos, começou a se relacionar com um homem, com o qual teve dois filhos, ambos já estão encaminhados, trabalhando e com família formada.
"Eu já sou avó, mas sempre gostei desta vida aqui", reforça aos risos. Por hora, ressente-se de nunca ter tido um emprego fixo, ao mesmo tempo diz que não ia gostar de ter alguém lhe mandando fazer as coisas. Ainda assim, tem esperança de conseguir, um dia, uma aposentadoria do governo.
Regina lembra que na juventude era muito linda. "Tinha uns pernão que deixava os homens loucos. Até hoje, quando eu me arrumo, boto uma maquiagem, pareço outra pessoa", narra com vaidade. A alegria acaba quando lembra dos problemas de saúde, pressão arterial, diabetes e depressão. Afirma ter acompanhamento médico em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), no qual recebe os medicamentos, caso contrário, não teria como comprá-los.
A casa onde mora na periferia de Fortaleza é alugada, quem paga é um dos filhos. Recebe ainda uma ajuda do governo federal no valor R$ 75,00. Pelos programas sexuais ganha em torno de R$ 30,00 a R$ 40,00 reais uma hora), mas não é todo dia que tem cliente. Mesmo sem faturar nada, ela não desiste do ofício, permanece lá, sentada num dos bancos da praça onde se sente segura e acompanhada.
Paixão
No ano passado, revela ter conhecido um cliente pelo qual se apaixonou de verdade. "Ele é tão feio, tão feio, que eu chamo ele de Macaquinho. No primeiro programa, passamos três dias juntos. Tem mais de um ano que a gente sai. Ele até já andou lá por casa, mas eu nunca levo meus clientes lá. Ele já quis alugar uma quitinete para morar comigo aqui pelo Centro, mas a dona não quis alugar porque ele é preto. Aí não deu certo. E eu também sou muito ciumenta, e ele gosta mais da outra".
Além dos clientes (geralmente velhos conhecidos), Regina se relaciona com as "colegas de ofício", com os vendedores de lanches e demais frequentadores da praça. Como ela mesma diz: "gosto de conversar com todo mundo. Ninguém aqui é melhor do que o outro. Eu sempre fui assim, converso com todo mundo", diz a mulher devota de Nossa Senhora e de São Francisco.
Em meio à prosa sem pressa com os dois jornalistas, ela lança a pergunta: "E vocês são católicos?" Respondemos que sim. Regina, então, respira aliviada e fala: "Ainda bem, porque eu não gosto muito desse povo evangélico. Minha nora é evangélica, eu até me dou com ela, mas eu não gosto deles".
Vaidade
Rita também é vaidosa, mas ao contrário de Regina, é mais seletiva. Na boca, um batom rosa cintilante que é retocado a todo momento. A pele, quase sem rugas não revela a idade. Os cabelos, pintados de loiro, disfarçam os fios brancos. Pulseiras e gargantilhas delicadas, imitando ouro, compõem o seu visual feminino e discreto. O vestido preto de modelagem fluida esconde as gordurinhas e melhora a autoestima da mulher.
Aos 54 anos, Rita revela ter dois filhos já adultos, um deles, inclusive, é membro da Igreja Universal, localizada a poucos metros da praça. Segundo ela, a família desconhece a sua rotina de programas, alegando ser vendedora de roupas e de aparelhos celulares. "Somente nas horas vagas eu venho aqui. Se aparecer algum cliente eu saio com ele. Prostituta pra mim é aquela que só vive do programa".
Morando próximo à praça, Rita costuma passar com frequência no "ponto". Tem uns 10 anos que vai ao local e foi dessa forma que conheceu uma das poucas amigas, a Regina. "Eu sou assim, não gosto de conversar com todas as pessoas. Aí tem gente falando que eu sou antipática, mas eu não acho ruim", reconhece.
Com os clientes Rita não é diferente. "Eu só saio com quem quiser. Dia desses, parou um negão aqui numa bicicleta bonita, sabe? Mas eu não aceitei. Não gosto dos morenos, prefiro os homens mais brancos", reage. Nesta hora, lembra de um relacionamento duradouro com um cliente. "Ele é policial, lindo e é louco por mim. Eu também gosto dele, mas prefiro ficar sozinha, sem ninguém".
Rita não esconde a preocupação com a vulnerabilidade das ruas, mas diz sentir-se tranquila na Lagoinha. Encara a prostituição mais como um passatempo. "Tem mulher que sai daqui para fazer programa lá na José de Alencar. Eu não vou, acho muito perigoso", comenta. (Cristina Pioner)
Projeto de lei propõe regulamentar profissão
Ninguém olha pelas prostitutas, mas todos olham para as prostitutas, nem que seja para criticar ou usar seus serviços. Até porque, elas estão presentes em vários pontos da cidade e da sociedade, porém continuam renegadas. Em Fortaleza, por exemplo, não foi identificado nenhum programa, ação ou representação para falar em nome das profissionais do sexo. O único alento é o polêmico projeto de Lei Gabriela Leite (2012), apresentado pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ).
A iniciativa contempla pessoas adultas, capazes e de ambos os sexos. Visa regulamentar a atividade dos profissionais do sexo. Estabelece, ainda, uma diferenciação do que é trabalho e do que é exploração, inclusive na hora da remuneração pela atividade sexual. "Garante políticas públicas de acesso à saúde laboral e o acesso à justiça trabalhista. São muitas as garantias que retiram homens e mulheres, cis e trans, de uma situação de exclusão e marginalização", completa o parlamentar.
Contudo, existem alguns entraves. Um deles é o tabu em torno do tema, a exemplo de qualquer assunto ligado à liberdade sexual, em especial do público feminino.
Na avaliação de Jean Wyllys, as mulheres, historicamente, têm seus direitos sexuais tutelados por políticas públicas formuladas por homens brancos e ricos, defensores de um modelo patriarcal que nega a liberdade feminina sob o argumento de que ela põe em risco a própria sociedade.
O segundo entrave é a tradição histórica de inviabilizar as prostitutas, relegá-las a espaços à margem do Estado de direitos, para que seja mais fácil submetê-las à exploração sexual. "Muitos dos que as condenam são os que fazem uso de seus serviços, uma relação que parece - mas não é - contraditória. Explorá-las e impedir que sejam reconhecidas como trabalhadoras garante os altos lucros de exploradores sexuais que não raro mantêm relações próximas, como muitos dos deputados e senadores", alerta.
E, por fim, o terceiro entrave é justamente o medo de "defender prostitutas", por causa da difamação e estigmatização impostas por certos grupos, sobretudo os ligados às igrejas. Medo que afeta inclusive parlamentares progressistas, que preferem evitar o desgaste político com o eleitorado conservador ou com grupos da própria esquerda, como o de feministas abolicionistas.
A proposta deve tramitar por mais três comissões de trabalho. Para tanto, foi determinada a formação de uma comissão especial dedicada à iniciativa. Jean Wyllys informa que é neste estágio em que se encontra o projeto, aguardando a designação desses membros.
O nome do projeto é homenagem à carioca Gabriela Leite, militante política e fundadora do Movimento das Prostitutas do Brasil, que morreu em 2013. Lançou a grife Daspu para dar sustentabilidade às ações da ONG Davida e escreveu a autobiografia "Filha, mãe, avó e puta".
Veja entrevista, na íntegra, com o deputado federal Jean Willys (PSOL-RJ), concedida ao Diário do Nordeste por email, sobre o Projeto de Lei Gabriela Leite, que tramita desde 2012. O autor propõe a regulamentação da atividade dos profissionais do sexo, homens ou mulheres acima de 18 anos.
- Como está o andamento do Projeto de Lei Gabriela Leite? E como surgiu essa proposta?
Jean Willys - Durante a minha primeira campanha como candidato a deputado, eu recebi o pedido do movimento organizado das prostitutas, que era liderado por Gabriela Leite - que foi minha amiga até a morte e era uma pessoa maravilhosa -, para conversar com elas sobre essa reivindicação histórica da categoria. Elas me explicaram que a falta de uma regulamentação legal do trabalho sexual as deixava totalmente desprotegidas, principalmente no caso das prostitutas mais pobres. Quando fui eleito, encontrei novamente com elas e começamos a trabalhar. Existia um projeto anterior, do ex- deputado Gabeira (Fernando), que já tinha sido arquivado, mas elas queriam fazer algumas alterações e correções, e a minha assessoria também ajudou. A decisão final sobre o texto foi do movimento. Elas o debateram em encontros presenciais em diferentes estados e também por grupos de e-mails. Como o projeto precisaria tramitar por mais de três Comissões de trabalho, houve a determinaçãoda formação de uma Comissão especial, dedicada a ele. E é neste estágio que o projeto se encontra, aguardando a designação desses membros.
- Quais são os maiores entraves do projeto?
Há três entraves principais: o primeiro é o tabu que cerca o tema, como cerca qualquer tema ligado à liberdade sexual, sobretudo das mulheres. Mulheres historicamente têm seus direitos sexuais e reprodutivos tutelados por políticas públicas formuladas por homens brancos e ricos, defensores de um modelo patriarcal que nega a liberdade feminina sob o argumento de que ela põe em risco a própria sociedade. O segundo entrave é a tradição histórica de invisibilizar as mulheres prostitutas,relegá-las a espaços à margem do Estado de direitos, para que seja mais fácil submetê-las à exploração sexual. Muitos dos que as condenam são os que fazem uso de seus serviços, uma relação que parece - mas não é - contraditória. Explorá-las e impedir que sejam reconhecidas como trabalhadoras garante os altos lucros de exploradores sexuais que não raro mantém relações próximas como muitos dos deputados e senadores. E, por fim, o terceiro entrave é justamente o medo de "defender prostitutas", porque causa da difamação e da estigmatização impostos por certos grupos, sobretudo os grupos ligados às igrejas.
Medo que afeta inclusive parlamentares progressistas, que preferem evitar o desgaste político com o eleitorado conservador ou com grupos da própria esquerda, como o de feministas abolicionistas, que dizem que o trabalho sexual é uma forma de "mercantilização do corpo", como se outrostrabalhos socialmente aceitos não implicassem também a mercantilização de outras partes do corpo diferentes da genitália. Gente com uma visão paternalista da função do Estado, que acham que ninguém deve ter direito de escolher a prostituição como forma de trabalho, porque é uma escolha ruim e então deve ser proibida.
Quais são os pontos mais relevantes do projeto?
O projeto contempla todas as pessoas adultas e capazes, incluindo as mulheres trans, as travestis e os garotos de programa. Então, a proteção é para todos e todas. Estabelece uma diferenciação clara do que é trabalho e do que é exploração, inclusive na hora da remuneração pelo trabalho sexual. Garante direitos, garante a dignidade de trabalhar em um espaço fiscalizável, limpo,organizado e seguro, inclusive gerido pelas próprias pessoas que nele trabalham, sem que uma delas corra o risco de prisão. Garante políticas públicas de acesso à saúde laboral e também o acesso à justiça trabalhista. São muitas as garantias que retiram homens e mulheres, cis e trans, de uma situação de exclusão e marginalização. E mais que isto, defende as liberdades individuais e o direito de escolha, o direito sobre o próprio corpo, e o direito de reivindicação de trabalhadoras e trabalhadores que hoje sofrem uma situação de extrema precarização justamente pela ausência dessa regulamentação. Nãos e trata da minha vontade, mas da vontade delas, organizadas politicamente.
O projeto contempla a aposentadoria especial dessa categoria após 25 anos de trabalho. Será que no atual cenário político no Brasil é possível avançar em prol desses profissionais do corpo?
O projeto estabelece que após 25 anos de contribuição seja possível solicitar a aposentadoria, nos moldes do que já está previsto para muitas categorias profissionais, que são contempladas com tempos menores de contribuição justamente porque se reconhece certas especificidades e riscos daquele trabalho. E nada disto jamais foi visto como um problema na hora da regulamentação profissional de ninguém. Não deveria ser agora.
Existe algum modelo em que a legalização da prostituição tenha dado certo? Onde?
Não existe um modelo definitivo de legalização em prática. Há diferentes sanções, como, por exemplo, à manutenção de casas, à oferta pública ou aos clientes, enquanto a prática da prostituição pode ser considerada dentro da lei ou até mesmo reconhecida como profissão, como já ocorre no Brasil há quase duas décadas. No entanto, são os países que mais criminalizam a prostituição os destinos preferidos das redes de tráficos de pessoas para exploração sexual, porque em muitos desses países as margens de lucro são mais altas, há a conivência de agentes públicos e as leis locais geralmente levam para a cadeia as mulheres que consigam escapar da exploração, porque elas são consideradas criminosas independentemente da exploração sofrida. Ao mesmo tempo, iniciativas que regulamentam em algum grau a atividade geralmente são mais bem-sucedidas no combate ao tráfico humano.
- As ditas "mulheres de vida fácil" enfrentam todos os tipos de problemas: falta de acesso à saúde, vulnerabilidade nas ruas, calotes, agressões verbais e físicas, e, mesmo assim, há quem se posicione contra o projeto? Por quê?
Primeiro, porque há um discurso histórico de que o custo da liberdade é o sofrimento. O sofrimento é imposto como uma moeda de troca. Isto é reproduzido todo o tempo por diferentes grupos e classes. Mas mesmo dentre grupos progressistas, muita gente critica o projeto sem falar com as prostitutas, como se elas não tivessem o direito de serem ouvidas. Eu fiz isso: ouvir e tentar representar. É o meu papel como deputado!
Enquanto os profissionais do sexo não dispõem de nenhuma lei de amparo ao trabalho, a quem eles podem recorrer em casos de exploração, violência, acidentes, aposentadoria?
Há poucas iniciativas que estendem atendimento e suporte jurídico, e geralmente disponíveis apenas em grandes centros urbanos. Por mais que por vezes sejam eficientes no que se propõem, eliminar as desigualdades regionais é urgente. É preciso lutar por algo com eficácia nacional, urgentemente, enquanto também lutamos por ações e políticas públicas no âmbito de estados e municípios
Fonte: Diário do Nordeste
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